domingo, dezembro 21, 2008

de reis e o que mais

Todos os retrados do reino eram guardados para ele. As pequenas crianças, que haviam decomposto o quadro antes mesmo do óleo ter sido diluído, as jovens damas, insuantes aos seus olhos para serem capturadas como ninfas pela eternidade, os heróicos guerreiros que voltavam da batalha e, em pose, revelavam uma acidental mancha de sangue seco na lapela, que as empregadas do reino haviam sido ameaçadas para não limparem e os permitirem a grandiosidade da vitória da morte, enfim. Cada quadro era pintado pelo mesmo homem, o que causava uma desconfortável impressão em quem via-os no futuro; a primeira, de que todo o reino era perigosamente incestuoso, dado a repetição constante dos mesmos traços de estilo, desenho após desenho e a segunda de que, por mais esforçado que fosse, era clara a intenção de enaltecer a beleza do rei além da dos seus súditos, apesar da gritante feiúra do monarca.

No pequeno quarto em que ele trabalhava, contemplava num momento uma tela nos seus entremeios. Havia um homem centralizado, chapéu na mão e terno alinhado, arte-finalizado e belo, mas com fundo carente de pinceladas, ainda pálido e incompleto, uma infinitute vazia que desagradava a vista de jeito complicado de se explicar. A vista que decaía com a idade fragilizava após o crepúsculo, assim, recolheu os pincéis e as tintas, enrolou-os em pano branco e encerrou o trabalho, guardando à visão da luz de velas apenas as silhuetas assustadoras dos empregados pelo castelo.

...

Precisando de ajuda, pediu ao rei conselho. O que faço, majestade?

Corte-lhe a cabeça!

Era um péssimo conselho.

Pior ainda quando Sir Alguma Coisa, responsável pela segurança do meio, entrou de súbito nos aposentos reais e tomou por ordem as palavras descontextualizadas. A espada escapou do bainha, tomou o ar num silvo certeiro e desfez a ligação carnal entre corpo e alma, cabeça e tronco do pintor. Ao rei não se guardou sequer angústia; mimado, achou graça no espetáculo tão inesperado. O pintor, porém, teve a infelicidade de não presenciar as tonalidades que fluíram de seu corpo. Sua amante, ao ver a cena, teve certeza de que ele adoraria o calor daquelas cores.

outono inverno prima'verão

Sinsenhor, nós temos um problema dos grandes. Como pode ver-- ah, sim, se pudesse ver, o rapaz está enraizado aqui. Não, não pelos pés, ele está enfiado até os joelhos dentro da terra. Nós contactamos -- digo, foi contactado um biólogo -- não, não fomos nós, acho que foi a imprensa, enfim, o biólogo disse que o rapaz está pronto para florescer. Sinsenhor, florescer, dar flores. No outono, correto. Aparentemente ele não segue a ordem sazonal das plantas. Como? Bem eu não sei. Disseram que ele trabalha numa barraca de macarrão. O trabalho é fácil, de poucas horas, dizem que não cansa ninguém. Sim, ele fica sentado a maior parte do tempo. Mas... não, ninguém obteve grandes informações. Nós estamos tentando falar com os pais dele, mas não sei. O pai trabalha na capital, só aparece uma vez a cada semana. A mãe nós ainda estamos procurando. Diz que tem irmã, namorada também. Oi? Ah, crime de amor? Talvez seja. Digo, acho que ninguém perguntou isso ainda. Pode ser. Mas isso não é comum é? Abandonado? Quando... na chuva? Mas ele está até os joelhos! Será que ele está aqui há muito tempo? Mas como ninguém notaria? O rapaz deve ter ficado assim por semanas! Não, não tem um ponto do ônibus aqui perto. Hm...não sei quanto tempo ele conhecia a menina, mas talvez se ele viesse muito aqui, as pessoas poderiam achar que ele estava esperando ela, como sempre. Não seria incomum, acho. Mas ainda assim, senhor, essas raízes precisaram de vários dias para chegar nesse estado. Nós tentamos movê-lo à força e foram necessários muitos homens para perceber que dali ele não saia. Sim sim, nós estamos providenciando pás para cavá-lo dali. Não, o biólogo não sabe afirmar, mas se ele começar a secar, murchar e morrer, nós replantaremos ele. Apenas um momento, capitão. -- Certo, senhor, informações novas: nós conseguimos encontrar a irmã e ela afirma que o namoro dele já durava alguns meses, quase ano e -- sim, sim, perdidamente apaixonado. Oi? O senhor quer que eu mantenha a namorada sob custódia durante o processo de extração do rapaz? Mas como... queixa de homicídio? Senhor, eu não sei se -- sinsenhor, o senhor é o chefe. Nós vamos entrar em contato com a patrulha para abordar a menina e voltamos a entrar em contato assim que começar a colheita.

sábado, dezembro 20, 2008

guerreiros de neon

Você mija,
toma banho
e daí dorme.

Você fecha a porta
- intervalos de uma hora, pro almoço
mas só quando trabalha oito horas -
e esquece a luz da cozinha acesa.

Come chocolate
bebe água quente
lava o rosto
com água quente
tira a roupa
perde o pijama
dorme de cueca.

Lembra d'esquecer o beijo de despetida
-- de ter esquecido, sem querer -
tem pesadelo atrás de pesadelo
de como ela vai e vai e vai e vai
e você fica e fica e fica e fica.

A cama feita nova
de lençóis limpos
com cheiro de alvejante
e perfume de jarros de plástico.
O perfume de jarro de vidro
'tá longe, longe, no pesadelo
e no sonho
e no ontem
e logo mais.

Você toma banho
e mija, talvez no banho,
e daí dorme.

domingo, dezembro 14, 2008

miau

Enrodilhado na soleira, cabeça sobreposta aos braços, escapando um sussuro pelo bigode, sacode dos pêlos do rabo dois dedos de neve, um gato. Pardo, no aguardo de presa, afunila os olhos, afunila os olhos com a vontade, procurando o cheiro de sangue a ser resvalado, em escape da miragem de sombras que compõe o baixo da cidade nas linhas da calçada. Um deslize, nas escadas em desgelo, faz da queda um sobressalto, as orelhas dos ratos eretas avisam, cuidado!, de onde eles se escapam para tocas e rachaduras e saias de raparigas desatentas - e quem bom sejam, poupando-nos do escândalo d'um rato entre as pernas! -, fazendo da fome do felino, o mal-jeitoso, um teco de ironia no cozido.

segunda-feira, dezembro 01, 2008

do ritmo dos contos-de-fada

E assim foi, porque ele era agraciado com um jeito quase silencioso de se comportar no escuro. O sentar mudo, o sorriso surdo, o toque em deslize cujo roçar não levanta poeira nem eriça os pêlos. É todo um comportamento muito valoroso, de até algum charme, quando no céu que é azul depois da chuva o sol brilha e ele se escapa pela cama embora sem despertar ninguém.

Nesse sonho, porém, de onde vem a calma quando o pesadelo inicia ao despertar e encontrar-se sozinho na cama? É um murmúrio, daqueles que tanto se sente quanto se ouve, soprado pelas dobras dos lençóis -- e estica-se os lençóis para o alto, içam as velas, navegam como barquinhos à deriva no mar, subindo e descendo, subindo e descendo, de repente tão banal quanto as banalidades da vida, tão banal quanto a beleza que se torna banal ao invés de beleza, o que é banal, mesmo?

Banal é o som do vento na proa, da vassoura no chão, da poeira levantando, do fogo acendendo no fogão, do eu te amo que se diz na despedida; banal é tudo aquilo que é tão verdade que não fascina mais, mas continua fazendo a gente se sentir bem.

Era um apanhado das coisas que ela guardava atrás da porta. Recados em envelopes, anéis de compromisso antigos, um K7 de Curtis Mayfield de alguns verões atrás; assim vai. Tinha tudo um cheiro ocre, como o do Opala que era corona de final de festa, tremendo na subida, pegando no tranco desembestado no morro da Lagoa, encontrando numa das curvas um repentino dia no horizonte.

E a Lagoa se estendia eternamente.

Ela sentou ao pé da cama. Nesse tempo todo, tinha desenvolvido um certo jeito com as palavras que me deixava vexado. Deixando ela em casa, aconchegada no ombro, fazia-me desejar ombros mais confortáveis. Com ela já posta em seu lugar, na cama quente e sozinha, eu voltava quando um passarinho amarelo arriscava um rasante sobre o concreto.

Era um passarinho por demais amarelo. Amarelo claro, como gema de ovo, de jeito que nunca vi antes.

Da minha descrença brotou uma preguiça da mais profundas e, entregue ao sofá da sala, o rebolado das ancas ia e vinha, desse jeito desinteressado de quem dança, se deita e banha na noite. Da monarquia francesa, porém, aprendia novas ações. O cruzar das pernas, escolher os talheres certos para comer o tomate, a carne, o musse; pôr o chapéu no peito e abaixar a cabeça; continuar a comer o assado sob o azevinho dos lustres e as balas de canhão. Suar apenas quando estiver perfumado.

No telefone, quando ela liga, o toque é diferente.

E, em vezes tempestuosas, ela emputecida reclama dos pratos deixados sujos na pia d'um dia para o outro. As baratas!, as baratas! ela reclama alto, enfezada. As baratas não gostam de batata, digo, mas ela não acha graça; tanto carboidrato as deixam gordas, e ela me escapa um sorriso. No banheiro, porém, quando faz das torneiras varais, e desgostoso retiro as calcinhas pingando para abrir o chuveiro, é minha a indignação. Um absurdo!, digo. Absurdo é você meter a boca nela e não querer meter a mão, seu babaca, ela me diz. É justo, ou talvez seja.

Ninguém nunca vence... em pé?

Mas nada disso tinha mais importância quando as flores do jardim se poram a cantar.

quarta-feira, novembro 12, 2008

voo/doo

Mas olhando para os azulejos da parede da cozinha, azulejos meio creme de amarelo escuro queimado sujo, com esses padrões quadradinhos, cada padrão no seu azulejo e cada azulejo lado a lado contornando toda a cozinha, em argila seca e desenhos de esmalte reluzente, de coisa velha, de cozinha da casa antiga da vó, antes dela se mudar para um apartamento no centro a certa altura de uma dessas ruas asfaltadas sem as árvores e as casas de jardim de antes; ele sentiu fome. Fome de bolo recém feito, retirado do forno, úmido do chocolate derretido que dava, mesmo valendo a pena, dor de barriga.

E esperando na mesa de tampo frio e café quente à frente, pondo açúcar e mexendo mexendo bem acordado no dia ainda cedo, ia e voltava os olhos de uma porta para outra, bem em silêncio. E uma porta de um lado levava para um lugar estranho, um não-corredor e não-aposento que ligava cômodos, mas sua indefinição era incômoda e também era de azulejos por todo lado, embora outros, menos no teto; a outra porta era pro resto da casa, casa bem definidida onde cada metro é ou sala ou quarto ou banheiro ou corredor ou parede.

Não tocando em mais nada, absorto pelo tempo gotejando na têmpora pra irritar sua espera, ele houve ao ouvir passos como coisa-sólida. Senta a velha pela porta da não-casa, limpando as mãos de terra e fedendo à galinha viva, galinha de cocô e ovo chocado e cacarejos insistentes durante o dia a mastigar milho e ciscar o chão, bicando escondida durante a tarde os pintinhos filhotes de outras. A velha se chega para as cadeiras e ela é toda arqueada, de cabelos brancos e vestido largo florido, revelando meia canela e varizes roxeadas, enrugada toda como se tivesse passado a noite jogada no chão do quarto; e puxa a cadeira arranhando o chão com barulho, senta cansada em repouso entregue e estende as mãos na mesa.

Ele olha pros olhos, que brotam como sabe-se-lá da pele, coisa qu'ele nunca viu assim ou bem assim ou sequer mais ou menos assim, para ser mais honesto. Hesitando, ele cede ao impassível da velha depositando as mãos sobre as dela e, áspera, ela corre com os dedos a mão dele inteira. No silêncio dela, ele segura o fôlego, e ela nem murmura nada "interessante", nem "oh", nem quaisquer outras interjeições; mas deve ter mais do que tédio nas linhas, deve ter pelo menos morte que segue até o fim, na certeza de que ele morre [e, ao mesmo tempo, na certeza de que ele vive até morrer, sendo duas certezas, assim].

A velha limpa a garganta, escoando o pigarro, joga as mãos dele de volta ao tampo frio e levanta, arrumando o vestido para baixo e caminhando lenta até o fogão. Não queima a lenha mas liga o gás, acende o fogo e ferve a chaleira, preparando o cozer do feijão. Ele toma e queima impaciente o resto do café, se prepara pra sair, mas sente nos pés um peso de toneladas, d'onde ele se arrasta pouco mais do que dois azulejos pra frente. Ele pergunta.

A velha vira, se ri, se acha graça, se mexe agora com graça de bailarina, de pena ao vento, trigo à brisa, barquinho à deriva, puta à cama. Ela peg'o rosto dele na mão, beija a testa, abençoa o caminho do caminho que segue e leva embora pela porta que ele nunca entrou.

terça-feira, novembro 04, 2008

ser curto é ser grosso

É um questão de pertinência, sabe. A impertinência é perigosa; quanto mais abre-se a boca, mais chance dá-se às borboletas de voarem embora encanadas pelo canto. É, em meio tempo, no meio do tempo das coisas, qu'ela olha de cara séria quando ele pergunta, Mas você não é empregada?, em resposta de "Sim, mas não a sua" e ambos seguem partidos lado a lado.

quinta-feira, outubro 23, 2008

possibilidade sem conclusão

Mas se, tomado de toda fúria,
bebido da cachaça mais pífia,
desse adeus a qualquer lamúria
de tentações da biografia;
Seria o abismo que se estende
quando o recém-feito dezoito,
encarando de frente o poente
interrompesse de súbito o coito;
Ascende passadas n'orizonte
- a força propulsiva desgastada do peito feito morada da dor um ano mais velha -
pisada pela mudez do all star
pelo desbotado jeans da noite
e na nudez da morte, beijar;
A íris escurecida pelo lápis preto
os lábios molhados pelo desejo
ver-lhe-ei, em canção do realejo,
pelas frestas do paraíso em seu peito.

quinta-feira, outubro 16, 2008

enxerto

No revirar dos papéis ele encontrou uma carta. O sangue foi lavado na brancura da surpresa e ele tentou esconder-me o papel, empurrando-o de qualquer jeito de volta para a gaveta, ainda tremendo com a caligrafia de "Querido Amor," brilhando sob as pálpebras. Agia como se nada acontecesse, tentando desperceber o que eu já tinha reparado; a única questão que ainda havia era quem ele protegia: ele ou eu?

"Querido Amor," ela começava. Eu saberia, eventualmente, ao arrastar furtiva a gaveta no silêncio de uma noite quando ele ainda trabalhava, não só isso, mas todo o resto. "Saudades. Nos últimos dias, minha única companhia tem sido as estátuas da praça. Acho graça na forma como elas, mesmo inanimadas e suas desconhecidas, concordam sobre as suas manias mais irritantes. Elas não se divertem mais, porém, ao ouvirem falar de ti. De amores elas já estão cheias, me dizem, e nada novo nos torna especial. A verdade disso me dói, mas ao mesmo tempo...

"Ao tirar as fotos desses homens de cimento, esqueci por um momento que para todos da cidade eles sempre estão lá. E foi assim, subindo no banco e nas pontas dos pés para alcançar-lhes o canto da orelha, que sussurrei que, para o mundo, eles são tão banais quanto o nosso amor.

"A terra úmida fez com que eles orvalhassem e uma única gota projetasse do canto do olho, escorrendo como lágrima. Foi triste a minha vingança, eu senti, mas necessária pela dúvida que me impuseram.

"Sentada aos pés deles, mesmo assim, pedi perdão. Perdão em bom português, para que apenas eles, em meus sonhos, entendessem. As pessoas que iam e vinham me olhavam estranho e assim para meu amigos cinzentos. Era uma inesperada retomada de atenção. Pedi perdão, dizendo que após todas as coisas que eu vi, todas as coisas que eu carrego em foto comigo, todas elas já se foram. Tudo digno de atenção não me importa mais.

"Minha foto da Torre Eiffel. Eu mostrei para eles, tão distantes de Paris. Mostrei o ângulo, a luz, a sombra das pessoas nas janelas. Mas eu contei para eles da menina que caminhava com o pai de mãos dadas, carregando uma boneca, que logo caiu no chão. E assim, de como a menina, num beicinho tão francês, olhou chorosa para a boneca suja, fazendo o pai se abaixar e limpar os joelhos da neta de pano. E contei de como as fotos ficaram ruins, sem luz, tremidas, mas de como é disso que eu lembro do dia, e não da Torre Eiffel. Empilhe o metal como quiser, para casa leva-se apenas uma lembrança; pelo pai e a filha eu levei uma adoração mais doce, mais íntima, mais minha.

“De qualquer forma... a saudade que eu mando será maior quando a carta te alcançar. Assim como --“ era o fim abrupto da primeira página. O som da casa ganhando vida fez com que eu despertasse de qualquer loucura e abandonasse a página de volta na gaveta, sem tempo de procurar a continuação. Enquanto escapava para quartos mais seguros, onde eu fosse – ou simplesmente parecesse - inocente de qualquer suspeita, temia no fundo a tensão que residiria dos segredos de nossos olhares.

terça-feira, outubro 14, 2008

interrompido

Rapaz feito de retalhos
toma atalhos lá trás
e tropeços na frente.

Pressão é muita pressa.
Pr'essa ter mais precisão
tem calma antes que tente.

Menina cheia de queixume
Perfume cheiro de morfina
que s'espalha no dia quente.

Presume qu'as mãos n'esquina
cristalina se dão por costume
do romance que não se mente.

Pecado no cheiro que exala
Já cala a boca do acuado
vagalume que ainda se'nte.

e so on.

sem sol

[~4min. in]
Ele me escreveu que nos subúrbios de Tóquio existe um templo consagrado aos gatos. "Eu gostaria de poder transmitir para você a simplicidade, a falta de afetação desse casal que veio colocar uma lâmina de madeira inscrita no cemitério de gatos, para que sua gata Tora estivesse protegida. Não, ela não estava morta, apenas fugiu. Mas no dia de sua morte ninguém saberia como rezar por ela, como interceder com a morte para que ela fosse chamada por seu nome certo. Então eles vieram aqui, ambos, sob a chuva, para perfomar o ritual que repararia a teia do tempo onde foi rompida."

quinta-feira, outubro 09, 2008

work in progress, baby

[10:19] hai-ku.

furtiv'a manhã
entre o nosso sonho
ainda amo.


[11:08]

Aproveitando, do sono, a calma
em'omento de re-consciência,
agarra o real nos lençóis
no respiro do dia que nasce
antes que o devaneio passe
e das nuvens raiem os sóis
no frio frio da cama vazia
e desperte o vento da chama.


[11:16] injusto

Não quis nada
Não fiz nada
Nem achei nada legal
Quando caiu a chuva
- E todo mundo a louva -
Também m'olhei no temporal.

(pp. 53-55)

Billy Pilgrim padded downstairs on his blue and ivory feet. He went into the kitchen, where the moonlight called his attention to a half bottle of champagne on the kitchen table, all that was left from the reception in the tent. Somebody had stoppered it again. "Drink me," it seemed to say.

So Billy uncorked it with his thumbs. It didn't make a pop. The champagne was dead. So it goes.

Billy looked at the clock on the gas stove. He had an hour to kill before the saucer came. He went into the living room, swinging the bottle like a dinner bell, turned on the television. He came slightly unstuck in time, saw the late movie backwards, then forwards again. It was a movie about American bombers in the Second World War and the gallant men who flew them. Seen backwards by Billy, the story went like this :

American planes, full of holes and wounded men and corpses took off backwards from an airfield in England. Over France, a few German fighter planes flew at them backwards, sucked bullets and shell fragments from some of the planes and crewmen. They did the same for wrecked American bombers on the ground, and those planes flew up backwards to join the formation.

The formation flew backwards over a German city that was in flames. The bombers opened their bomb bay doors, exerted a miraculous magnetism which shrunk the fires, gathered them into cylindrical steel containers, and lifted the containers into the bellies of the planes. The containers were stored neatly in racks. The Germans below had miraculous devices of their own, which were long steel tubes. They used them to suck more fragments from the crewmen and planes. But there were still a few wounded Americans, though, and some of the bombers were in bad repair. Over France, though, German fighters came up again, made everything and everybody as good as new.

When the bombers got back to their base, the steel cylinders were taken from the racks and shipped back to the United States of America, where factories were operating night and day, dismantling the cylinders, separating the dangerous contents into minerals. Touchingly, it was mainly women who did this work. The minerals were then shipped to specialists in remote areas. It was their business to put them into the ground, to hide them cleverly, so they would never hurt anybody ever again.

The American fliers turned in their uniforms, became high school kids. And Hitler turned into a baby, Billy Pilgrim supposed. That wasn't in the movie. Billy was extrapolating. Everybody turned into a baby, and all humanity, without exception, conspired biologically to produce two perfect people named Adam and Eve, he supposed.

quarta-feira, outubro 08, 2008

infantil

Mariazinha carregava uma lancheirinha com a merenda. Joãozinho filava a comida do amiguinho ao lado. Mariazinha derrubou as bolachas no chão. Joãozinho riu. Mariazinha chorou. A professora ralhou com os dois.

Pequeno João chegou em casa batendo a porta. A mamãe pôs ele de castigo. Pequeno João respondeu. O papai deu uma surra nele. Todo mundo ficou irritado. Pequena Maria não olhava mais o pequeno João direito.

João matou aula. Maria foi atrás dele. Os dois sumiram por horas. Ninguém procurou eles - mas eles se procuraram -, ninguém sentiu falta deles - mas eles sentiram na separação -.

João viu a água correndo sob a ponte. Maria viu as areias empilhando. João era João Velho. Maria era Maria Velha.

E João, ainda João, cansado de tudo e de nada, trabalhava em árduos turnos para arranjar dinheiro. Ele tinha ainda, pelo menos, 50 anos, imaginava. Ele tinha mais. E o dinheiro deu. Ele comprou um diamante de presente e todo mundo chorou e chorou, mas João não ria mais. Ele chorava com os outros, feliz em fluxos de lágrimas. Acabou o churrasco e a cerveja, eles tomaram banho e se deitaram no escuro, se procurando a noite inteira. Mas todo mundo notou quando eles não voltaram.

E os filhos choraram, os netos choraram e os bisnetos - que tinham recém ouvido a história de como João seguiu Maria até o cinema, quando ela andava de mão dadas com Pedro, e gritou com lágrimas nos olhos "Maria, não me deixe! Eu te amo!" envergonhando todo mundo que tava lá porque, Velho João de voz rouca, a maioria das pessoas não ama de verdade e se envergonha com amor genuíno - choraram também.

E era tanta lágrimas, mas tanta lágrima, que Maria e João riram. Juntos. Uma última vez, como se todo o choro fossem as bolachas sujas no chão.

sábado, setembro 27, 2008

smokestack 1

Noite'nsa, de ar pesado e chuva tênue tosqueando o horizonte.

De pele nua sobre a cama, rosto cansado de marcas do tempo, tremendo de frio nos lençóis de algodão. Braço exposto, furos púrpuras de contragosto; o peito arfando em leve dificuldade, de ossos da costela marcando a pele flácida; ventre sem filhos suando frio, tetas sem leite secando nos mamilos moles. Os olho entreabertos procuram imagens no fundo da cabeça.

Ele suja os lençóis com as botas de terra da rua. Caído na cadeira puída, segura o cigarro com o indicador e o dedão, soprando fumaça que se espectra na luz do abajur de conchinhas da praia. O espectro de um sorriso esfumaça no canto da boca quando ele olha para o lado com olhos de brilho frio para ela.

A garota que, em gráfico de tempo-sonho, um dia foi a garota dos sonhos. Tocando o pescoço de madeira, a pele gelada da rua toca a pele fria da morte - ele sonha com um jardim na lua, ela lamenta a falta de sorte - para sussurro de poesia despoética no canto do ouvido. A voz dele perfura a escuridão.

Ah--, de costume as pupilas dilatam, a têmpora escorre, a jugular trava e pulsa. Engole em seco em desejo de conhaque, tão acostumada com o êxtase heróico que o ventre aborta as juras de dor. Sentado na cama, nana a espera como quem despeja areia n'olhos dela. Torce por uma última noite de devaneio nos lençóis, de castelo de areia onde ela lembra d'vagar pela praia.

Alucinando em meio sonho, ela escapa para o lado mais uma vez, em deslize de sangue contaminado. Ela vê ele entre seus peitos, sentido o queixo de barba que nasce pinicar a caixa toráxica e o resto do corpo descendo com o seu, misturando suores. De cabelo caído na cara, ele libera o sorriso de filho da puta para um passeio, com a saliva engrossando pra'zedar a boca. Daqui em diante é só veneno.

quinta-feira, setembro 11, 2008

you should be working

Não renegue a minha gentileza
antes que toda a sua beleza
pela, da minha palavra, clareza
como água liberada da represa
jorre em torrentes de tristeza
e nós sobramos, sentados na mesa,
sem nada para dizer um ao outro.

A culinária poderia ser francesa
Toda comida irrelevando, a dor a mesma
O vento soprand'os vasos de natureza
A solidão caindo em passo de lesma
Mas nós ainda lado a lado.

Se sussurra a velha máxima
emcanto de orelha póstuma
sorri a língua como por imã
magnetismo de jura só uma
passado de lembrança duma
fumaça que procede a chama
mesmo pro peito que ainda clama
afogando pelo abrupto

--

sexta-feira, agosto 29, 2008

backupúblico lololuz

Isso foi cuidadosamente reescrito desde o princípio.

Ela pegou uma caneta para anotar um recado. Pendurada no fio do telefone, ela rabiscou os números e depois amassou o papel e jogou fora. Ele estava sentado na cadeira do lado. Pegou uma moeda para brincar entre os dedos, olhando de esguelha quando o papel caía.

Se você ia jogar fora, porque você anotou o recado? ele meio riu.

Porque eu anotei errado, ela jogou a caneta junto com o bloquinho de papéis.

Claro que não, você -- e aqui ele racionalizou a situação para ela, acreditando que faria alguma diferença na história.

Liga para o número então, ela retrocedeu no caminho juntando o papel caído para atirar contra ele, e veja você.

Quem eu procuro?

Tanto faz.

Ele ligou; em pé, no lado do telefone, brincando com a moeda. Ela sentou na cadeira antes dele, de costas para ele, contornando as unhas com a ponta dos dedos. A moeda caiu, ele se abaixou para juntar quando alguém atendeu.

Alô, ele falou. Ninguém respondeu. O telefone foi atendido pelo silêncio. Alô. Alô. Alô. Nada.

Viu? ela virou, o número tá errado.

Ele desligou. Cerrou o cenho do olhar para ela.

Não me olhe assim.

Assim como?

Você sabe, você sabe. Assim, ela imitou a cara.

Não me imite!

Foi engano?

segunda-feira, agosto 18, 2008

Provérbios para Idiotas

1. Juras de amor devem ser retas.

sexta-feira, agosto 08, 2008

backup

Ele era um pequeno garoto que corria sobre os confetis coloridos do chão.

O céu nublado desbota os seus olhos, ele disse.

O quê?

É o que acontece quando só se escreve textos de amor.

Ele continuou correndo até a beira de um rio. Sentou contando as folhas carregadas pela corrente, uma atrás das outras, uma atrás das outras, girando e dançando e naufragando contra pedras, engolidas por monstros do mar. Ele me falou dos medos da tempestade, dos relâmpagos que raiavam o céu na noite, do vento que tremia as janelas; de como o vidro vibrava antes de se despedaçar e fazia-o temer que ele fosse despedaçar também, como um menino de vidro.

Ele abriu as mãozinhas para molhar na água quando dizia do conforto das cobertas e da proteção dos lençóis quando ele se escondia em uma bolinha fofa de algodão na cama, e secando as mãos na bermuda ele virou sorrindo dizendo que era um pequeno tatu.

E eu nunca estou sozinho lá dentro, ele falou com os pézinhos querendo se apressar, nem que eu esteja apenas comigo mesmo. É estranho, né?

Tudo é estranho, eu falei.

Por quê, ele olhou com o rosto meio de lado atraindo a resposta para si.

E eu falei de quando teimava para cobrir com as cobertas o meu frio. De quando a chuva não dava medo mas saudade, lembrando da forma como ela caiu pela primeira vez entre as folhas da árvore por onde antes passava o sol e molhou o rosto e o corpo e a não-solidão para sempre, fazendo de todo amor algum tipo de umidade. Toda noite de chuva era noite de chover palavras, sozinho para sempre no único momento em que não havia solidão.

Ah, como era ruim isso. Como era ruim estar contando todos os meus Era uma vez assim, da mesma forma que num dia, em Era uma vez, nós estávamos no chão apaixonados e as coisas todas começaram a escapar pelos dedos uma a uma como grãos de areia. E foram eu te amo's com corações e outras palavras bonitas, e foram as distâncias que ficavam entre nós, e foram o medo de perder aquilo junto com a alegria de ser aquilo, e a consciência de tudo asfixiando a garganta e fazendo as últimas palavras serem um sussurro para as formigas nem a grama nem as folhas das árvores poderem ouvir as primeiras trêmulas juras de amor. E tudo isso foi durante o sol, antes da chuva. Durante a chuva, tinha só chuva.

Não me olhe assim, não me olhe mais assim, eu pedi. Ele me olhava com olhinhos antes tão puros de vilania, agora tão refletivos da verdade [que por isso eram ainda os mesmos]. Deixando para trás o gosto ruim na boca da conversa atravancada que não resolveu a nossa despedida, ele partiu. Como todos que não eu.

***edit [quase lá]
For as often as you drink this cup... it is never enough.

domingo, julho 27, 2008

q

- Eu vi os olhos deles abertos. Eu vi o trilho. Nos olhos, o brilho. O trem cuspindo fumaça, o horizonte sendo devorado enquanto ele mastigava carvão, gemendo faíscas e... se aproximando, se aproximando, eu vi os olhos deles abertos. Ah, como os medos deles eram concretos. Eles ligaram, eles sintonizaram, eles pularam fora; qual foi o erro, então? Qual... qual foi o erro?

Ah, se eles tivessem mais fé. Eu vi a mente deles lá, aberta. E eu lembro do cheiro, hum, tão cheio de coisas. O cheiro da morte, talvez. Foi esse o erro?

Foi esse o erro? O erro foi ver. Foi virar as costas e ver o trem se aproximando, abrir os braços para recebê-lo no peito com um sorriso. Não foi desistir. Não foi aceitar o destino, nem aceitar a morte, foi aceitar que toda a beleza os cobrisse--

Foi como olhar para as coisas sem saber o nome delas primeiro. Você aumenta o seu vocabulário para sentir mais coisas - lembra de quando amar não estava entre suas palavras mais ditas? -, você diminui o seu vocabulário para sentir mais coisas - lembra quando você dava um beijo para dizer que "sim"? -, você pára e olha e olha e olha e...

Coloca as mãos no bolso. Respira, suspira. Fecha os olhos. Tem toda aquela vida acontecendo ao seu redor, todas as coisas que começam a ganhar um lugar e um sentido, pessoas dando as mãos umas as outras infinitamente e todo o universo se conectando. E aí? Aí você lembra como era ser uma criança brincando sob o sol.

E você não se preocupava em olhar, em procurar, em ser. Você era, as coisas surgiam e eram ensinadas e ganhavam sentido perdendo sentido - aquelas coisas que você sabe o que são, mas não porque são; todas aquelas coisas ruins que você não consegue esquecer - e vem a saudade. A saudade de tudo ao mesmo tempo.

E ela atropela todos eles. Todos os corajosos que, no caminho, perceberam que a questão não é fugir dela, mas fugir de todo o resto. Abandonar todo o resto, todas as linhas tortas, e reescrever elas. Uma a uma. Até encontrar sentido. Até encontrar paz. Até perceber, velho e morto, que isso foi tudo que o seu gênio permitiu.

E nos olhos deles, abertos, eu vi. Vi tudo isso. Para ouvir à noite o uivo na garganta das grandes mentes da nossa geração se perdendo. Transcendendo a própria carne apenas como cinzas.

Perdidos pra sempre em metáforas, com verdades entaladas eternamente na garganta.

sexta-feira, julho 18, 2008

Agora eu não sei onde estou.
Eu nem sempre soube, nem sempre liguei.
Mas teve uma época de passado
onde eu me aproximava de beiradas
apenas para sentir o prazer da vertigem.

E eu costumava ver todo tipo de coisa.
As imagens vinham assim, na minha direção
nos momentos em que a cabeça entorpecia
e elas flutuavam pelos meus olhos
por alguns instantes de milissegundos
antes de se esconderem de toda a lembrança.

E agora eu não sei onde estou.
Mas eu sei o que elas eram:
Profecias.
Porque elas me voltaram, uma a uma.

Deveria coisas, eu suponho, para elas.
Seriam avisos fortes, eloqüentes,
antes elas me viessem não como deja vu
mas como o renascentismo do meu destino.
Mas todas as vezes, elas apenas me voltam
da mesma forma que eu voltava a ser criança.

Uma vez, eu corria, até eventualmente saber
que, continuando assim, seria içado aos céus.
O pulo, porém -- o pulo é a minha analogia.
A analogia que explica minhas profecias.
O pulo é o momento em que eu percebia, já no ar
que a decisão não era mais minha. Não mais.
O pulo era quando eu percebia que a gravidade
estava lá, cercando, o tempo todo, antecipada
puxando de volta quaisquer desejos para o chão.

E cada uma dessas minhas profecias foi uma queda.
Porém toda queda foi doce.
Foi despencar das nuvens e cair e cair e cair
como num sonho antigo, também da infância,
onde eu estava no mar, fundo e frio
quando baleias começavam a nadar ao meu redor.
E elas gigantes não me viam minúsculo
carregado para próximo, tão inútil e fraco,
sem controle nenhum dessas forças da natureza
que me arrebataram tão desameaçadoramente
que não havia medo, apenas um frio forte
de vísceras que abdicavam do sangue para
fazerem o corpo arder e o coração pulsar pesado
entregue tão abertamente ao universo
que quaisquer caminho de morte e de dor
ou de liberdade e amor, era o caminho certo.

Sabe?

Eu não sei.
Eu acho que, talvez, eu esteja lá.

quinta-feira, julho 10, 2008

todas as coisas que duram pouco

Isso é bem errado na minha opinião
Mas imagine isso:
O deserto e é meio dia
e a areia do deserto é meio laranja
como se não fosse areia, como se fosse
o Grand Canyon que tivesse fragmentado
e a areia é meio laranja e tem aquele
efeito de aurora boreal quando bate
o sol nela do jeito certo, meio de lado
e tudo cintila e esse tipo de coisa.

E o sol não está nascendo, nem se pondo
mas ele está meio baixo no céu, sei lá,
como se ele se preparasse para voar
e o céu fica todo meio assim, dessa forma,
com as cores meio fora do que deviam.

Certo, aí tem os prédios que brotam
e eles não brotam, mas eles estão lá
sempre estiveram, sobre a areia
e eles são tantos e tão altos que é quase
como se não tivesse areia, mas há
só que tem asfalto também, e é noite
noite escura e densa, noite que se toca
e os prédios meio que acendem luzes
e tem placas de neon e sei lá mais o quê.

E você nem lembra mais do deserto, nem do sol,
quando você vê isso, certo? Mas ele está lá!
É isso que é tão errado na coisa toda.
O deserto e o sol aparecem toda vez, mas
eles não aparecem de verdade. Eles são uma
lembrança sua, uma imagem complementar,
que está lá quando você vê aquele homem andando.

E o homem usa essa coisa de tecido sobre o corpo
e ele tem um chapéu de cowboy, tudo negro.
E ele é tipo uma silhueta no horizonte, porque
todo mundo usa roupas coloridas e que tem aquele
brilho reflexivo estranho do neon, enquanto ele
enquanto ele é todo meio opaco, e anda lento
enquanto todo mundo voa com as motos pelo chão.

Aí ele levanta o braço bem lento, bem sem pressa
E tem uma arma na mão dele, um revólver antigo
tipo um Colt que dá um reluz mas parece enferrujada
E ele dispara - BAM! BAM! BAM! - e continua assim.
E daí você pode ver o relógio dar as badaladas da noite
E você pode ver as ondas de calor subindo da areia
Tudo isso junto com os motoqueiros despencando no chão
derramando sangue que jorra tão lindo tão lento
flutuando como um desenho, formando nuvens rubras
na vista em câmera lenta, até despencar em chuva,
chuva que é como uma das pragas que tenta libertar
toda a beleza dos nossos pecados, chuva que só caí
quando a próxima bala voa, e o chumbo dança
e canta assoviando no ar, explodindo em faíscas
e tudo tudo o mais está certo no universo, porque o sangue
vai entrar dentro da areia, e dela irão brotar árvores
de cerejeira, que darão flores na primavera.

domingo, julho 06, 2008

A voz gultura na saída da garganta. Coberto nas sombras dos olhos cegos, sempre na escuridão; ela lembra do frio que lhe subiu pela espinha ao encontrar o brilho do olhar branco leitoso que marcava a pele negra. Ela viu o demônio, uma caveira de cores opostas, lendo sua alma e seu destino, traçando seu futuro com um sorriso. As mãos dele repousavam sobre a mesa, dedos grandes e pesados, um violão velho contra as pernas de madeira da cadeira, um copo de cerveja que marcava círculos no tampo da mesa enquanto suava. Dezenas de círculos velhos desbotados, presos uns aos outros, na madeira velha, como o plano de pouso de alienígenas.

Eu bebo, ele falou capturando o pensamento dela pelo cheiro, porque preciso. A voz dele arranhava profunda, esparramando como lava que tinha que vir do centro da terra até brotar do chão, onde solidificava e endurecia, cheia de seriedade. As mulheres, o demônio baixou a cabeça, quase pousando o queixo sobre os círculos de suor da bebida, bebem porque querem; bebem porque a bebida fá-las quentes, o interior de suas bocas macias e úmidas, concede-lhes gosto de surrealidade e línguas de inconsciente que flutuam como sonhos.

Ele engasgou uma risada. As sobrancelhas curvaram em consciência do que falava, para quem falava e o riso tossido espantou o cheiro do enxofre.

É por isso que não deveis beber, nunca. É uma coisa terrível fazer homens apaixonarem-se por vós.

***

sei lá, na boa.

Num momento de silêncio, tudo que se podia ouvir era o motor do carro. Olhando brevemente pelas janelas laterais ele se perguntou porque não haviam postes na estrada; tudo que cercava o asfalto que se estendia por... não sei, talvez para sempre, ele só podia ver até onde as luzes do farol alcançavam, eram árvores e mais árvores.

Ela olhava pela outra janela, ele supunha que ela se preocupasse com coisas mais importantes, mas não muito menos triviais. Ela sentava quase rente ao friso inferior da janela, a cabeça tão repousa no banco que seu queixo quase tocava o peito, os joelhos apoiados contra o painel do carro. Ele gostava dos jeans desbotados dela. E das meias coloridas.

Eles continuavam tocando contra o infinito da noite quando ela ligou o rádio, liberando toda a estática acumulada pelas últimos milhas. A o primeiro zumbido que agitou os stereos fez ambos soltarem pequenas caretas antes da música se libertar. Canalizando toda a aflição o rádio começou a tocar meio baixinho, tímido pela arranhada elétrica nos ouvidos alheios. Ela não tocou no volume, ele não largou a direção, o carro andava.

Os sons cresciam aos poucos, fluindo do rádio. Logo, eles estavam em 1976. E eles estavam bem lá, estranhamente. Estranhamente em casa para bebês da década de 80.

Ele olhou para ela. Ela agora batucava os joelhos com os dedos, acompanhando a música. E osso contra osso em jeans surrados quase não faziam som nenhum. Ela não olhava pra ele, olhava para fora. Para os anos recentes do asfalto, para os anos antepassados das árvores.

Ele estava em 1976. Vendo o canto da boca dela borrada, ele imaginava a situação da sua própria. Checou no retrovisor, vendo primeiro a escuridão que ficava para trás, depois seus olhos, depois a boca de sempre, no estado de sempre. Ele sorriu, mas não viu o sorriso com os olhos novamente na estrada. era como se eles estivesse sozinho lá, agora. Intocado, distante, um pontinho partindo no horizonte.

Mas... ele podia ouvir, não podia? Ele quase podia ouvir, pelo menos. No passado. Ele podia ouvir os zipers do casaco sendo abertos, o ruído engraçado e tímido do plástico desfazendo o abraço, para tornar o seu um pouco mais cru.

Não podia?

Onde era isso? Agora, ou em 1976?

Onde ele está mesmo? Para onde ele está indo?

Será que isso realmente importa? Não são apenas questões para se preocupar quando acabar a gasolina?

sábado, junho 28, 2008

enough is enough

Mormente fosse, à palavra, qualquer coisa de intrínseca - quiçá de verdade -, não seria sobre um desfiladeiro de espinhos que pés repousariam sem sandalhas. Vilipêndias ácidas despontam da língua - que você conhece o sabor -, escorrem em colossos de rios afluentes em linhas retas de papel plácido, do pulso que contorce as mãos d'um poeta de pernas tortas em riscos de anarco-garranchos grafitais.

Amiúde a paixão seja terra, quem dera o amor - ao menos o nosso - fosse civil. Melhor, uma fera incivilizada de voracidade contra o concreto, do controle legislativo, executivo, judiciário, que é colorido de sua atonal monocromase de tédio pelas obsoletas palavras - que já eram, em Camões, as mesmas, logo fí-las pelas teias de significados que nelas repousam infinitas - destemperadas pela narcolepsia que apaga a noite. É obsceno, ou assim serias se fosse, o assombro cervical do sepultamento daquelas tão gastas, angularmente refletindo em'inha gramática no terror atemporal do mesmo erro - do peito aberto e da grafia, embora mais de um do que de outro -, de três palavras, as mesmas três, do trinômio divino que emoldura os portões do inferno; Não há paz.

O tremor que hibernava irrompe do pânico, liberta a preguiça hiperbólica, a timidez condescendente, o trêmulo contato elétrico do não-toque atômico. Tudo, enfim. Tudo até onde a experiência estética - e a má viagem ácida - finda, tal presa ao sussurro de sinapses desnorteadas, que o coro sônico do silêncio é sinfonia cacofônica no ebóreo salão veneziano da minha cabeça porém inaudivelmente surdo fora. Ele não punge coração algum. Troveja apenas rajadas brutais de frio cybernético, brisa de violência cyberpunk, espasmos inquietos de ventre viciado e babilônico fluir venenoso de cybermorte. Venha-me a carne do andróide.

domingo, junho 22, 2008

carta aberta

Eu convidei todo mundo que eu conheço para sair.
Menos você.

Foi o melhor que eu consegui pensar como vingança.



Mas eu ainda estou em casa.

domingo, junho 15, 2008

meias palavras meio bêbadas.

Eu ouvi toda aquela merda que vocês cantavam. Sabe, as paredes do banheiro são tão finas. E eu não gostei muito, mas era simpático, eu acho. Eu tenho achado muito ultimamente. Eu tenho vivido essa vida de achados, interpretando um desses leitores de cartas de tarot, mergulhado até o joelho em todo o tipo dessas coisas místicas, embora tenha quase certeza de que eu sou totalmente cínico... espera, cético?, sobre essas coisas. Ou talvez eu esteja apenas tempesteando um copo d'água, fazendo da minha incerteza uma questão de fé. Bela velha fé. Grande coisa, certo. Ok.

Eu não sei porquê vocês ficam voltando para essa música o tempo todo. Vocês estão procurando por algum tipo de iluminação? Digo, não pode ser isso. Ninguém escolhe um bar tão escuro assim pra iluminação. Ou é uma dessas coisas irônicas da vida? Tipo, eu acho - mais uma vez, mas não me culpem, a lua me olha como uma bola de cristal - que toda iluminação que você pode precisar está sob os lençóis certos, num bom momento. Mas toda a escuridão está lá também. E tem sempre mais escuridão do que luz, a não ser que o lençol seja velho e gasto e você consiga ver tudo mesmo quando ele está entre vocês; mas essa deve ser uma questão mais literal de fé, metaforicamente falando. Acho que a escuridão é sempre maior porque as chances de estragar tudo são sempre maiores, com toda essa propensão ao caos da física e dos átomos ou sei lá, então a luz brilha intensa nas nossas bocas piegas que acompanham nossos olhos de forma tão errática.

Eu nem sei mais, sabe. Eu nem ligo mais que vocês continuem cantando essa música, especialmente quando eu nem consigo mais ouvir direito. Ela não vai levar vocês para lugar nenhum mesmo. Nem eu vou levar vocês para lugar nenhum, não nesse estado. A peregrinação pelas ruas será da forma antiga, o penar religioso dos pés sobre salto alto altos demais para pagar por essa merda dessa música que não me esquece nem quando eu estou no banheiro, acertando a parede quando erro a mira, porque as minhas mãos tem que subir até as têmporas em súplica por silêncio. Então, sabe, eu acho que o silêncio seria interessante. Então, sabe, por que você não fica quieta por um minuto? Só pra ver como é. E, sabe, por que você simplesmente não cala a boca? Assim, cala a boca agora e eu prometo me envergonhar de formas nunca antes vistas e ouvidas e... e eu nem devia ter, isso, sabe. Com toda essa fermentação e tal. Em toda essa noite fria e tal. E estando vivo e tal.

E tal, sabe. Com a mesma música tocando de novo e de novo. Até até não.

quarta-feira, junho 11, 2008

the christianity of your virginity ou havana 2 ou incompleto 2

Ela levantou da cama, escapando das cobertas para o universo frio e distante que cercava a cama. O lençol deslizou do corpo para se amontoar no chão e revelar uma alvidez semelhante, e, debruçando contra a janela, ela olhava-o ainda sôfrego na cama, eclipsando a lua com o corpo que a fazia exalar uma auréola de luz como se banhada pelo próprio espírito santo. Os olhos tinham o mesmo brilho frio de tudo o resto quando chegava o inverno e ele ia longe no silêncio, farto na doçura do veneno que, ainda úmido escorrido no seu queixo, o queimava como gelo.

Você nunca me deu nada, ela lhe sorriu; sorriso porque o vento corria pelas suas costas.

Dei-lhe Paris, ele arrumava-se na cama desfeita, deitado sobre as costelas e repousando o sorriso-de-quem-contava-uma-história sobre o braço.

Paris fede a mijo e os franceses são terríveis. Voláteis, rabugentos, sensualmente cruéis.

Uma nação de mulheres.

Uma nação de selvagens em camisas bufantes.

Que lhe deram perfumes que a fizeram ter o cheiro de uma deusa.

Todos em pequenos frascos.

Eu sempre gostei do seu tamanho, falou jogando-se contra as costas e fechando os olhos para sussurrar, e a forma com que os lençóis sempre parecem repousar banhados de você por semanas subseqüentes.

O quê?

Ele respondeu abrindo os olhos, refletindo-a na íris.

Por que sempre me dá a impressão de que eu não ouvi a melhor parte?

domingo, junho 01, 2008

ahn

q

Edit:

Tomava uma caneca de plástico de nescau fumegante. A sua literatura literal me corroendo os músculos, criando um vácuo irritante no meio do umbigo que puxa toda a pele pros músculos e os músculos para os ossos e os ossos para eles mesmo, fazendo tudo muito magro, esticado, macilento, daquela forma que você pode ver cada célula se mover para provocar o movimento, elas cheias de força e ele tão sem vida.

O seu formalismo me cansando, quando eu nem sei o que escrever direito, então escrevo nada apenas para fingir que mais uma peça do quebra-cabeça do universo encontrou o seu lugar - e talvez tenha encontrado mesmo, num desses cantos do universo que são tão existencialistas que são vazios - e a paisagem vai se formando. E a paisagem é cheia de estrelas, mas nenhuma estrela nova brilha dessa vez, nenhuma estrela nova brilha essa noite, a luz ainda correndo desesperada pelo quantum para me dar um caldo como uma onda e me perfurar como uma partícula de granada dessas guerras que nós lutamos por idealismo.

E você se perde no meio do movimento. E eu me perco no meio do pensamento, quando a sua pele toca a minha mão - ou o contrário (embora eu duvidasse do contrário [embora eu duvidasse de tudo]) - e Michelangelo está no passado, tentando fazer o mármore ter a mesma suavidade, causar o mesmo tremor pela espinha, e ele está falhando; talvez por isso não se permite tocar as obras primas, para não perceber que as imperfeições dela esfacelam-se ao toque e tudo desanda, enquanto toca-se tudo o mais para a perfeição nascer desses mesmo farelos. Magnum Opus, quando a orquestra toca na minha cabeça o silêncio do espaço me sufoca, a luz finalmente atingindo a retina quando eu agradeço o último momento de lembrança e a sua literatura que me permite em contra-balanço congelar na estratosfera sem explodir.

quarta-feira, maio 28, 2008

é teu o inferno ou havana ou incompleto número 1

O crepúsculo de Havana sempre me fez crer que as palmeiras pegariam fogo. Eles me prometeram fogo todos os dias e eu recebi todas as noites com o mesmo frio pesado do mar e com as cortinas abertas, onde imaginava todas as nuvens fumaça de carbono que engolia a lua.

No saguão do hotel, um homem olhava rindo. Ele tinha, todos os dias, o mesmo sorriso. O sorriso de alguém tão fodido que nenhum dia era ruim, todos eram engraçados e poéticos a sua maneira. A pele negra dele reluzia suave com o contorno da luz dos abajures, marcando as rugas como sombras fundas que pareciam prestes a verter ouro. O chapéu velho pendia sobre os olhos e ele enrolava um cigarro para presentear a Fidel. Toda noite era um novo cigarro, guardado em uma caixa que, quando ele morresse, de acordo com o testamento, deveria ser entregue diretamente para El Führer, com toda a paixão dos meus lábios e o veneno da minha língua.

Ojos rojos, ele sussurrou quando eu tomava a rua.

Filho da puta, eu compartilhava o sorriso.

Diga-me como cagasse tudo, cabrón.

Digo-te nada que tu já não saibas; me lembro de palavra nenhuma, apenas do caminhar até a porta.

E da porta até onde?

Tu és quem sentinela a saída, como eu saberia?

Não se perde de vista mulher assim.

O diabo talvez não perca, mas meus olhos são cegos.

Bem, é o seu peito que arde.

Infelizmente. Sonho sempre com o dia que será a tua Havana.

Eu também, cabrón, eu também. Que haces ahora?

Nyet. Tenho pilhas de papel sem porra nenhuma lá em cima.

Sua cabeça deve estar enfumaçando.

Mais do que o meu coração.

domingo, maio 18, 2008

nada mais justo [nem o silêncio]

nenhum beijo faz chuva
ou amor

quinta-feira, maio 15, 2008

nevoa aka areia2

Uma névoa se estendia ante postes, por pouco mais do que uma dezena de metros. Caminhando dentro dela, podia ver apenas resquícios de luz, como se através de vidro embaçado, de casas no horizonte, de postes acima, das estrelas, da lua, do farol dos carros que passavam. A luz passava mais lenta, deixando traços, marcando o caminho no horizonte como pinceladas em uma tela em branco.

E, como a luz, ele se perdeu no caminho. Tudo acontecia atrasado - ele expirava fumaça do frio no meio de uma inspiração, cegando antes de piscar, vendo os carros cruzarem a estrada apenas para ouvir os motores momentos depois - e cíclico, como se cada experiência fosse a antiga novamente, até que cada pensamento, desejo e ânsia do momento estivessem tão repetidamente dentro de si que ele sufocava com tanta banalidade.

Ela tocou-lhe o ombro. Ele virou. Ele virou. Ela tocou-lhe o ombro. Ela tocou-lhe o ombro. Ele virou. -- você entendeu. Ela o olhava com certos olhos, os mesmos de sempre, mas mais nus, mais assustadores. Ela o via por dentro. Sua boca se mexeu, os lábios sem serem lidos e as palavras sem serem ouvidas. Ela curvou as sobrancelhas, cerrando os olhos. Ela esperava uma resposta, ele esperava as palavras o alcançarem. Ela desviou o olhar, finalmente, tão docemente desapontada que os cabelos soltaram-se para cobrir-lhe a expressão. Caminhou para longe, enquanto a névoa o engolia quando ele, ainda mudo, via-se gritando no futuro pela sombra de alguém que não estava mais lá.

Ele correu, tão atrasado quanto desesperado, e deixou a névoa para o vazio. Ela não estava mais lá, mas suas palavras o alcançaram, enfim. E talvez ele tivesse preferido não ouvi-las.

sábado, maio 10, 2008

Sibilava
silvos de
silêncio.
Muito fôlego para
poucas palavras
que não diziam nada
porque ele só ouvia
"ssssssssssssssssss"

À noite, porém,
ela apenas dizia
"não"
isso ele sempre ouvia
menos uma vez
(ela falou, mas ele ensurdeceu)
que foi a última
e a primeira.
Nesse ordem.

quarta-feira, maio 07, 2008

What do you want me to do?
To watch for you while you're sleeping?
Then please don't be surprise when you find me dreaming too.

segunda-feira, abril 28, 2008

areia

Ela caminhava alguns passos a sua frente. O dia era jovem e frio, invernando nublado na manhã quando as estrelas põem-se no céu e há luz apenas no horizonte contornado por postes que ainda não se apagaram e não há bem sol. A areia molhada de pós-chuva era pesada, mais negra que nunca, como o mar que espumava cinzento longe dos pés.

Cabisbaixo, ele via seus calcanhares marcando a areia. Subindo, pernas nuas, um biquini vermelho embaixo da camisa larga meio azulada, o cabelo ao vento. Ela -- trim -- não virava para vê-lo, ele apenas podia -- trim -- sentir o peso no peito de alguma culpa. Ela con -- trim -- tornava a marca da última onda com os chinelos na mão e ele pensava em -- trim -- estender a mão e tocá-la, ver seu rosto talvez. Mas o peso no peito era -- trim -- mais do que no peito, e ele não conseguia -- trim -- se arriscar a -- trim -- esticar e -- trim -- angustiar o to -- trim -- que que era tão -- trim -- distante; Ela se virou e despencou na retina de uma só vez.

E ele nem a assimilou, porque era a mesma de sempre, mas com olhos tão úmidos como o horizonte de Junho e ele sentiu apertar o estômago vendo-a escapar como o vento antes mesmo de criar coragem de erguer os braços e -- trim --

Se Deus lhe dá chuva -- trim --, ela falou, se molhe.

Você não acredita em De -- trim -- us, ele respondeu tentando estragar tudo.

Nem -- trim -- Ele.

Ele abriu os olhos, alcançou o tele -- trim -- fone na cômoda e arrancou fios e jogou-o na parede, em um baque de silêncio. Era ainda madrugada e ele se vestiu com um agasalho velho e quente para a praia. Foi no ônibus vazio em silêncio, desceu na estação vazia em silêncio, sem cumprimentar o motorista ou o cobrador e pisou a areia quieto, com olhos de súplica. E, no vai e vem do mar, na areia molhada não havia passo algum.

quinta-feira, abril 24, 2008

febril

cof cof :roll:

sábado, abril 19, 2008

abstração número um

Ele era um vagabundo. A senhoria indagava-se com as vizinhas por que ele nunca lavava as unhas? ou por que as roupas estavam sempre tão descuidadas? e por vezes até esquecia porque deixava ele ficar ali mesmo?. Era melhor tê-lo que um bêbado e, apesar de nunca receber muito pelas acomodações, ela não conseguiria mais por um quarto atolado no lado de uma dispensa de vassouras e mofo; a cerveja que ele a servia sempre que ela aparecia era sempre boa, mas ela nunca sabia porquê.

Ele nunca falava mal dela, porém, porque mesmo quando ela comentava nas escadas - e ele ouvia, porque mesmo sem luzes para vazar pelas frestas do corredor, seus olhos ainda estavam abertos e ele ainda se importava - de que o achava tão estranho e quieto, como quando ele passava como uma sombra e a cumprimentava com a cabeça e isso disparava um frio na entranhas dela que pareciam uma marca do diabo e ela achava que ele era gay, quando ela trazia café para ele, ela sempre deixava a colherzinha, para ele poder ficar mexendo o quanto quisesse. Não que ela fizesse isso de propósito, ela apenas era uma daquelas mulheres que deixavam a colherzinha.

Além disso, ele mal saia do quarto. Ele mal fazia qualquer coisa. Normalmente ele apenas caminhava um pouco de vez em quando e aparecia com um pouco de dinheiro e uma garrafa meio estranha - que era o que ele jogava na cerveja e ela achava uma delícia, mesmo sem saber o que era - e voltava pro quarto e ficava lá, de novo. O terceiro filho dela não gostava muito dele, dizia que ele tinha cheiro de escarro. O mais novo gostava, mas o mais novo era estranho, também. Um dia ele tinha entrado no quarto do vagabundo e os dois tinham conversado um pouco e o pequeno saiu rindo, mas dois dias depois ela encontrou ele dentro do banheiro, repousando a cabeça em uma das esquinas de azulejos e cantando baixinho uma música que ela não entendeu, mas lhe soou comunista. Ela quase subiu para dar-lhe uma bronca e o jogar para fora dali, mas não subiu porque lembrou que o homem que morava lá antes costumava mijar no chão e ela odiava limpar aquilo. Esse ali só tinha as unhas sujas e o cabelo meio mal cortado o tempo todo.

Um dia, porém, as portas abriram com ele caminhando para fora pesado, numa marcha de angústia. Ele não andava mais curvado, como uma larva que se escondia, ele era ereto e circundado por brisa da batida de asas de borboletas. E sua insurreição foi cruel, porque agora ele moldava a realidade como bem entendesse, com seu eu lírico cansado de esperar por seu deus ex machina. Ele era seu próprio zeitgest, a arma de Chekov ignorada no canto que disparava no último ato e elevava-se aos céus depois de mastigar e cuspir a cidade de volta como Leviatã. Ele não era o fim nem o começo, mas todo o pathos da humanidade passava por suas mãos, quando ele os soprou com pulmões de lobo e os desfez como areia no tempo.

valor do inconsciente

2 litros de sake = R$130

sexta-feira, abril 18, 2008

zomg preciso andar estou a beira de um infarto isso não é uma poesia etc

quarta-feira, abril 16, 2008

enquanto sono

Entrecantam para entrecontos
entre passarinhos preguiçosos
e passarinhos azuis e verdes
- não papagaios, nem sabiás -
Nem baixo, nem alto, quase lá
no meio, certeiro, mas sem mosca.

Quase perdem, quase atropelam
Quase, por atenção, esgoelam
Mas o trem azul corta a estação
E os sapatos caem no chão
E não se abre mão de um belo par de sapatos.

E no meio do caminho da volta
na poeira que voa quando o pé revolta
São dez metros mais longe,
Que foram dez metros mais perto
Que são metros para a puta-que-o-pariu.

segunda-feira, abril 14, 2008

não há poesia

Ela espera na janela com uma garrafa,
de Coca-Cola, de vidro, quando à tarde
o sol decola no céu, entre nuvens
dourando a pele dela, no calor que o dia arde.

À noite, ela é hipnótica, incinética
quando pára, vestido branco, de dançar
e a boca jura, como suor sua. Inestática
quando volta, eu ainda em transe, a caminhar.

E há noite, lenta, quando a lua assenta
e ela é prateada de neon.
E há tarde, quando de carmesim o mundo mude
e os lençóis não se-amassem-não.

Mas todas as manhãs, de todos os ontens
e, quiçá, os amanhãs, dela o cheiro exala
e o gosto azede, vil, quando me aquieto
e, desapaixonada, me deixa em shh amá-la.

segunda-feira, abril 07, 2008

Velho

O velho louco ficava sentado em uma cadeira de armar listrada no jardim, todas as manhãs, para pegar sol e fotossintetizar um pouco. A camisa velha, mas bem lavada, passada e estampada de flores entreabrindo no pescoço e descendo até o meio do peito, para respirar melhor, revelando cabelos grisalhos que, contrários ao alinhamento dos da cabeça, eram uma confusão decadente. Ele não era louco de verdade, ele apenas falava sozinho; o que antes era uma louvável retórica, agora era verbovirulência temida pelos vizinhos.

"A senhora que passa com o cachorro", ele começou naquela manhã, "usa perfume demais. Ele entra pelas minhas narinas, sobrepondo o perfume das rosas, e, estagnando-se perto do cérebro, faz-me considerar uma lobotomia. Ela sempre olha-me estranho, pouco desejosa, mas o cachorro ela sempre trata bem. Um dos dois caga na frente de casas alheias, e não sou eu; ainda resta-me sanidade em certas partes do corpo. O cachorro já virou a esquina, deixou-a para trás. Eu entendo a distância, eu também tentaria escapar desse cheiro. ... Um rapaz aproxima-se" -- Como vai? "e pergunta-me como eu vou. Eu não vou, eu sempre fico e nada me custa a companhia, então pode se sentar, eu respondo. Um dia eu fui, quando ainda era jovem e saudável e não fazia as pessoas indagarem, ao chocarem-se comigo pelos corredores, de quem eram aqueles olhos; porque essas olheiras que agora os emolduram não existiam, e não os faziam tão distantes, como se fossem uma luz no fim do túnel. Pelo contrário, ainda existia uma saúde de locomotiva, que cuspia um vapor que fazia as jovens perderem o fôlego, e ela era tão clara quanto o azul dos olhos da menina que mora dentro da casa próxima ao terceiro poste a direita, contando a partir daqui. Os olhos dela são bastante azuis, lembram-me do... a vizinha fofoqueira vai sair para fazer compras. Toda vez que ela passa é necessário silêncio, para não arriscar que a língua me traia e desperte a dela que, por demais afiada, pode custar-me a cabeça. Ela anda rápido, deve precisar comprar trigo ou açúcar para terminar a comida. Ela só é assim obstinada quando o leite ainda ferve sobre o fogão. E agora ela vai ao longe, além de onde as orelhas de morcego dela podem escutar. Aliás, alguém deveria dizer a ela que é essa bisbilhotisse que lhe construiu o carma que cedeu a seu filho aquelas orelhas de abano. Como eu dizia, os olhos azuis da menina daquela casa empalideceriam perante um outro par de olhos que eu conheci. Ainda mais azuis, ainda mais brilhantes, você conseguia pentear os cabelos olhando para eles, e passar mousse olhando para eles, e fazer a barba olhando para eles, e cortar a jugular com a navalha e morrer sangrando sem arrependimentos por ainda olhar para eles. Eles me ouviam reclamar e cantar e a eles eu jurei amor eterno, que ainda guardo mesmo sabendo que a muito eles são apenas cinzas. Foram comidos pela guerra. Não por bombas, nem ondas atômicas, mas por uma mulher traída, que levou eles de mim sem nenhuma despedida e fez com que a notícia da morte só chegassem quando eles já estavam ressecados e opacos e não havia como vê-los uma última vez... o rapaz ao lado não pára de bater os dedos. Ele espera que eu durma. Ele nunca gostou das minhas histórias; esse velho babão, ele pensa, deve ter sido babão a vida inteira e não adianta ficar escrevendo com a boca a céu aberto que não me engana. Mas eu vivi coisas. E coisas demais. Todos os sonhos e corações partidos, tesouros de piratas e monstros da montanha, são todos meus. O outro rapaz sempre me entende e vê a verdade. Esse só espera para levar-me para dentro, para ver-me branco sobre a cama. Mas dia após dia ele vê-me verde, transcendendo essa existência, em rugas de celulose. Finjo que durmo para que me leve embora e para que se liberte, sabendo que amanhã a menina sairá de casa mais cedo e me cumprimentará com um aceno e aqueles olhos que reavivam as borboletas do jardim. E é a calma da rua de hoje que fará suportável a tempestade de lágrimas da noite nostálgica de amanhã."

segunda-feira, março 31, 2008

Veludo

Meia gota de suor escorreu pela espinha, contornando vértebras numa dança não mais caótica do que a que sua cabeça fazia acompanhando o álcool. A jukebox arranhava uma música entre chiados que meio soavam como uma declaração de amor, escolhida por um junkie que só dividia a agulha com uma mesma pessoa, desejando ter com ela o mesmo fim. O junkie tinha desfalecido no banheiro, mole e sem graça, a dois passos do urinol. Ele mal tinha ouvido a introdução.

Aquela não era a sua música, mas era agradável. Todas as músicas eram agradáveis, todas as curvas eram agradáveis; das mulheres, das mesas, das garrafas vazias. Do cano da arma.

Quando a cabeça explodiu voaram engrenagens. Elas antes estavam alinhadas e giravam devagar, com uma fina ferrugem que se acumulava desde que ele abriu os olhos. Agora elas brilhavam clarinho na luz tênue, como estrelas em um céu de madeira velha, depois de passarem anos sem saber de quem era aquele dinheiro, de quem era aquela mulher, de quem era aquele sangue.

Recobrando a consciência, o junkie juntou cada engrenagem solta e guardou no bolso. Ele caminhava confiante, com o sangue fervente saltando-lhe as veias e no silêncio do jukebox sem moedas. O silêncio o incomodava, dava espaço demais para pensar.

Ele alimentou a jukebox com uma engrenagem. Enferrujada, com uma rachadura em cicatriz aberta; a música que saiu não foi a que ele tinha escolhido. Ela nem 'tava marcada no setlist.

Ele não gostou dela. Nem da próxima, nem da outra. Mas a quarta era muito boa e ele nunca tinha ouvido. Ele passou o dia inteiro lá, testando uma por uma.

E antes de vomitar suas próprias engrenagens na patente do banheiro, desejou que nenhuma delas fosse uma canção de amor.

sábado, março 29, 2008

Café

Por que você nunca escreveu sobre mim, ela perguntou com olhos ainda cansados sobre uma xícara de café fumegante.

Ele só conseguia sentir o cheiro do café, que dissipava o cheiro dela. Naquele momento, ele nem sabia se ainda...

Porque eu não poderia te desejar mais, você não pode voltar a ser platônica, ele falou. O domingo entrava úmido pela cortina entreaberta, com o céu acinzentado de um jeito que sempre o fazia se sentir estranhamente vivo, podendo ficar em casa sem fingir ser feliz.

Mas você escreveu sobre todas as outras, ela insistia, com a xícara na mão. Ela nem estava tomando o café e isso o irritava um pouco. Ele se virou para não ter que vê-la e resolveu encarar o domingo em exposição na janela.

E nenhuma delas foi minha de verdade. Nenhuma delas sequer existe, elas podem ser qualquer coisa, recatadas ou putas e eu não saberia dizer, porque para mim elas são todas iguais. São todas apenas palavras.

Eu gosto das suas palavras.

Ele tomou um gole de café, sabendo que o dela esfriava na mesa. Queimando a garganta, ele sentiu quando o líquido despejou-se sobre o estômago totalmente frio. Eu sei e agradeço, ele falou vendo como a manhã despejava-se lenta sobre o mundo às 8 horas, mas eu não posso amá-la e beijá-la e escrevê-la.

Eu prefiro suas palavras aos seus beijos.

Ele sorriu, percebendo que no reflexo do vidro ela o olhava sem tocar o café. E ele não precisava mais fingir que era feliz.

segunda-feira, janeiro 21, 2008

Prelude to Madness

O corpo era contornado por um fina camada de luz opaca azul. O martini no copo [pirâmide inversa suspensa por um filete cônico sobre uma base esférica de vidro] distorcia a luz, prismando-a como um arco-íris de tonalidades de diferentes e imperceptíveis saturações de cor, com uma azeitona flutuando no líquido como um pesadelo psicodélico sendo corroído por ácido.

A caixa de som explodiu. Tudo que escapava eram graves em um guitarless-dub cuja bateria descompasava o seu pensamento. Em um momento de alcoólica distração, os olhos acompanharam o brilho da luz pela superfície da pele dela, vendo o reluzir dos pêlos do braço brilharem como ouro de tolos e vertiginando-se em curvas suaves até hipnotizar-se pela reflexão da luz na sua íris, que lhe concedia a mitológica atração de uma ninfa, sereia, talvez uma quimera.

Quando ela virava a cabeça, os brincos balançavam e ela movia-se devagar. Ele via tudo em ondas, semiconsciente apenas de que passaria mal em breve. Perdeu-a de vista quando os olhos perderam o foco e, deitando a cabeça sobre o balcão, sentia a areia despejar-se sobre seus olhos ao observar o gelo derreter dentro do copo e estragar um antes perfeito whisky.

Dois segundo depois, estava em queda junto com o banco.
Eu deveria aprender guitarra e me tornar um rock star.

Essa é a primeira coisa da qual eu vou me arrepender no leito de morte.