"Que eu não seja julgado pela minha morte", o bilhete do suicida estatelado agora mesmo nas ruas amontoadas, embora agora vazias, da cidade que, em pleno meiodia, não tinha vivalma nas calçadas nem na rua e, por isso mesmo, levariam horas e horas até que o encontrassem as autoridades, porque os animais certamente o achariam antes e fartariam-se de suas entrenhas quentes e vermelhas e saborosas, claro, porque ele era um homem que não tinha nenhum vício, talvez na morte apenas, e o gosto saudável é melhor, apesar de que os legumes com bichos e sem agrotóxicos façam mais sucesso e sejam preferidos aos menos carcomidos embora levemente envenenados, então talvez se ele tivesse um parasita, uma tênia ou um vírus, ele fosse mais gostoso*, talvez fizesse mal, mas todo mundo morre no fim, ele pensaria nisso cinicamente se pudesse pensar onde está, mas na verdade nem isso ele tinha, se bem que ele tinha um belo par de tênis que eram azuis como o céu só que já estavam se enchendo de buracos de tanto que ele usava começou a rasgar no lado, o tecido não era muito bom, mas nada que é novo foi feito para durar, nem os eletrodomésticos, nem as máquinas, nem as empresas, nem as cidades, nem as sociedades, nem a globalização, nem quaisquer relações, certamente nem o amor, aliás, o amor dele foi uma coisa muito louca e bonita, um primeiro amor que durou anos e durava ainda, porque era uma coisa que ele lembrava com carinho sempre que podia, as vezes até quando estava sozinho no quarto escuro, não o quarto do qual ele pulou, mas de um outro, onde ele morava antes, onde ele amava conteporaneamente o seu primeiro amor, os cachinhos dela, os cochichos dela, os bilhetes e recados, as ligações do telefone e outras coisas que o deixavam vermelho-sangue no rosto, quando o sangue era dentro para deixá-lo assim, olha esse sangue todo aí fora!, será quem é que limpa, talvez no futuro o governo tenha tantas dessas mortes para lidar, esses jovens maquinando e se estragando, o amor é para a razão como água é para um eletrodoméstico, que vai ter toda uma unidade do governo destinada a limpar corpos e varrer o sangue, o que é uma boa idéia, porque talvez mais serviços públicos dêem segurança para mais gente e, por isso, mais gente não se mate, o que é realmente uma ocasião daquelas onde todo mundo ganha.
* aliás, será que se isso for verdade, os zumbis não deveriam se comer entre si para níveis máximos de prazer?
* aliás, será que se isso for verdade, os zumbis não deveriam se comer entre si para níveis máximos de prazer?