segunda-feira, novembro 30, 2009

já se posta qualquer merda

"Que eu não seja julgado pela minha morte", o bilhete do suicida estatelado agora mesmo nas ruas amontoadas, embora agora vazias, da cidade que, em pleno meiodia, não tinha vivalma nas calçadas nem na rua e, por isso mesmo, levariam horas e horas até que o encontrassem as autoridades, porque os animais certamente o achariam antes e fartariam-se de suas entrenhas quentes e vermelhas e saborosas, claro, porque ele era um homem que não tinha nenhum vício, talvez na morte apenas, e o gosto saudável é melhor, apesar de que os legumes com bichos e sem agrotóxicos façam mais sucesso e sejam preferidos aos menos carcomidos embora levemente envenenados, então talvez se ele tivesse um parasita, uma tênia ou um vírus, ele fosse mais gostoso*, talvez fizesse mal, mas todo mundo morre no fim, ele pensaria nisso cinicamente se pudesse pensar onde está, mas na verdade nem isso ele tinha, se bem que ele tinha um belo par de tênis que eram azuis como o céu só que já estavam se enchendo de buracos de tanto que ele usava começou a rasgar no lado, o tecido não era muito bom, mas nada que é novo foi feito para durar, nem os eletrodomésticos, nem as máquinas, nem as empresas, nem as cidades, nem as sociedades, nem a globalização, nem quaisquer relações, certamente nem o amor, aliás, o amor dele foi uma coisa muito louca e bonita, um primeiro amor que durou anos e durava ainda, porque era uma coisa que ele lembrava com carinho sempre que podia, as vezes até quando estava sozinho no quarto escuro, não o quarto do qual ele pulou, mas de um outro, onde ele morava antes, onde ele amava conteporaneamente o seu primeiro amor, os cachinhos dela, os cochichos dela, os bilhetes e recados, as ligações do telefone e outras coisas que o deixavam vermelho-sangue no rosto, quando o sangue era dentro para deixá-lo assim, olha esse sangue todo aí fora!, será quem é que limpa, talvez no futuro o governo tenha tantas dessas mortes para lidar, esses jovens maquinando e se estragando, o amor é para a razão como água é para um eletrodoméstico, que vai ter toda uma unidade do governo destinada a limpar corpos e varrer o sangue, o que é uma boa idéia, porque talvez mais serviços públicos dêem segurança para mais gente e, por isso, mais gente não se mate, o que é realmente uma ocasião daquelas onde todo mundo ganha.

* aliás, será que se isso for verdade, os zumbis não deveriam se comer entre si para níveis máximos de prazer?

sexta-feira, novembro 20, 2009

TIED TO THE WHIPPING POST!!!

Os olhos turvos abstêmicos; prepare-se! Ele s'afasta, tênis furado e sujo emboreando, mãos embolsadas - não se vê, o jeans é grosso, mas os dedos coçam a perna nervosistissíssimos -, o rosto de o quê neutro escondido, neutralidade borbulhante de risco; ele afasta, mas não podia ser diferente, o coração racha - ele tão fã: joga uma pedra de gelo na coca-cola e o gelo racha inteiro, é apenas pedaços reunidos, esse negócio de estilhaços que é o seu coração, igualzinho - 'inda que inteiro esteja, não espera muito e é ele para todo o lado.

tsc tsc, ele diz. Como ela olha, besta; até a beleza dela é tão pouca, se reduz: cinzas são belas como o fogo, corroem-se e farfalham, incandescem e, com o certo tanto de vento, espalham pelo mundo e isso é bonito, o toda-parte, mas é feio como o nada que sobra e não se tem - o fogo é seu mesmo que machuque e não há lealdade como essa no mundo, ou, se há, ele não conhece. O brilho dela eram seus olhos, ele ri e vê a graça na desgraça - o que exige menos do que s'espera, vê como até o léxico já entrega: tira o des e é só graça, tem mais graça do que des até, então se não se vê o revés da situação, se a vê mais favorável, ela é graça pura -, e é assim que, teimosamente, ele vê ela agora, tod'as coisas qu'ele mais ama s'atropeland'uma co'a outra: mas ele lembra, é claro, como amava nos dias de beijos que se inesperavam intensos onde houvesse não-espaço entre suas bocas. Por isso que ele ama, ou ama mais, ou que ele é romântico: a verdade é que o amor de verdade precisa de uma boa memória e ela esquece tanto, céus, o que é que ela não esqueceu até hoje? Sua boca queima, sua voz de fogo, "Eu sempre pensei que você quebraria meu coração por amor tanto, não por amor pouco".

segunda-feira, novembro 16, 2009

Ela parada na frente do espelho, um púrpura violentado na bochecha, o sossego sôfrego no fundo dos olhos e no fundo do reflexo e ela lembra, impassível, da tarde subindo em crepúsculo, de como ele-- amiúde volta ele e ele e ele, ela fecha a janela. Sente saudade, muito porém, é das crianças, mormente. Seus pézinhos azulados descalçando a grama dos parques, a chuva insinuando ainda uma queda, o céu trovejando e tudo o mais: ela calada e quieta, reprimida, circunspecta, uma doçura sem palavras de braços abertos! Um deles se aproxima, o cabelo endemoniado pelo vento, o nariz ranhento, entrega um convite - o espelho mostra a careta do rosto, desgostosa - Você Está Solenemente Convidada - ela sente nojo, humilhação e vergonha agora, em retrospecto; poderia, mas como?!, ter pulsado eufórica no momento, tão tola e estúpida! e era o que era mesmo, tinha certeza, não havia dúvida; o sangue retornou à ponta da língua salgado, azedo, envenenado, ela engasgou e tossiu sufocada, pôs a mão no pescoço, maldisse o céu e o inferno toda dor e toda - Felicidade, era o que dizia, em letras garrafais e coloridas, esse embrulho disforme. As crianças cercaram-na com seus corpinhos diminutos - cada uma de uma cor; cabelos roupas braços pernas, toda a pele. Uma verde e outra roxa, então vermelha, azul, amarela, laranja, assim ia: pequeninos filhotes do arco-íris elas eram, impetuosas e irrequietas e cantavam sincopadas até que eram só ritmo e o ritmo era um mantra que hipnotizava e o toque de uma só foi o que bastou para ela perceber que o convite não exigia resposta, a Felicidade já tinha aparecido bem diante do seus olhos, gigante como a cegueira, impossível de não se ver. E ele ao seu lado.