quinta-feira, outubro 23, 2008

possibilidade sem conclusão

Mas se, tomado de toda fúria,
bebido da cachaça mais pífia,
desse adeus a qualquer lamúria
de tentações da biografia;
Seria o abismo que se estende
quando o recém-feito dezoito,
encarando de frente o poente
interrompesse de súbito o coito;
Ascende passadas n'orizonte
- a força propulsiva desgastada do peito feito morada da dor um ano mais velha -
pisada pela mudez do all star
pelo desbotado jeans da noite
e na nudez da morte, beijar;
A íris escurecida pelo lápis preto
os lábios molhados pelo desejo
ver-lhe-ei, em canção do realejo,
pelas frestas do paraíso em seu peito.

quinta-feira, outubro 16, 2008

enxerto

No revirar dos papéis ele encontrou uma carta. O sangue foi lavado na brancura da surpresa e ele tentou esconder-me o papel, empurrando-o de qualquer jeito de volta para a gaveta, ainda tremendo com a caligrafia de "Querido Amor," brilhando sob as pálpebras. Agia como se nada acontecesse, tentando desperceber o que eu já tinha reparado; a única questão que ainda havia era quem ele protegia: ele ou eu?

"Querido Amor," ela começava. Eu saberia, eventualmente, ao arrastar furtiva a gaveta no silêncio de uma noite quando ele ainda trabalhava, não só isso, mas todo o resto. "Saudades. Nos últimos dias, minha única companhia tem sido as estátuas da praça. Acho graça na forma como elas, mesmo inanimadas e suas desconhecidas, concordam sobre as suas manias mais irritantes. Elas não se divertem mais, porém, ao ouvirem falar de ti. De amores elas já estão cheias, me dizem, e nada novo nos torna especial. A verdade disso me dói, mas ao mesmo tempo...

"Ao tirar as fotos desses homens de cimento, esqueci por um momento que para todos da cidade eles sempre estão lá. E foi assim, subindo no banco e nas pontas dos pés para alcançar-lhes o canto da orelha, que sussurrei que, para o mundo, eles são tão banais quanto o nosso amor.

"A terra úmida fez com que eles orvalhassem e uma única gota projetasse do canto do olho, escorrendo como lágrima. Foi triste a minha vingança, eu senti, mas necessária pela dúvida que me impuseram.

"Sentada aos pés deles, mesmo assim, pedi perdão. Perdão em bom português, para que apenas eles, em meus sonhos, entendessem. As pessoas que iam e vinham me olhavam estranho e assim para meu amigos cinzentos. Era uma inesperada retomada de atenção. Pedi perdão, dizendo que após todas as coisas que eu vi, todas as coisas que eu carrego em foto comigo, todas elas já se foram. Tudo digno de atenção não me importa mais.

"Minha foto da Torre Eiffel. Eu mostrei para eles, tão distantes de Paris. Mostrei o ângulo, a luz, a sombra das pessoas nas janelas. Mas eu contei para eles da menina que caminhava com o pai de mãos dadas, carregando uma boneca, que logo caiu no chão. E assim, de como a menina, num beicinho tão francês, olhou chorosa para a boneca suja, fazendo o pai se abaixar e limpar os joelhos da neta de pano. E contei de como as fotos ficaram ruins, sem luz, tremidas, mas de como é disso que eu lembro do dia, e não da Torre Eiffel. Empilhe o metal como quiser, para casa leva-se apenas uma lembrança; pelo pai e a filha eu levei uma adoração mais doce, mais íntima, mais minha.

“De qualquer forma... a saudade que eu mando será maior quando a carta te alcançar. Assim como --“ era o fim abrupto da primeira página. O som da casa ganhando vida fez com que eu despertasse de qualquer loucura e abandonasse a página de volta na gaveta, sem tempo de procurar a continuação. Enquanto escapava para quartos mais seguros, onde eu fosse – ou simplesmente parecesse - inocente de qualquer suspeita, temia no fundo a tensão que residiria dos segredos de nossos olhares.

terça-feira, outubro 14, 2008

interrompido

Rapaz feito de retalhos
toma atalhos lá trás
e tropeços na frente.

Pressão é muita pressa.
Pr'essa ter mais precisão
tem calma antes que tente.

Menina cheia de queixume
Perfume cheiro de morfina
que s'espalha no dia quente.

Presume qu'as mãos n'esquina
cristalina se dão por costume
do romance que não se mente.

Pecado no cheiro que exala
Já cala a boca do acuado
vagalume que ainda se'nte.

e so on.

sem sol

[~4min. in]
Ele me escreveu que nos subúrbios de Tóquio existe um templo consagrado aos gatos. "Eu gostaria de poder transmitir para você a simplicidade, a falta de afetação desse casal que veio colocar uma lâmina de madeira inscrita no cemitério de gatos, para que sua gata Tora estivesse protegida. Não, ela não estava morta, apenas fugiu. Mas no dia de sua morte ninguém saberia como rezar por ela, como interceder com a morte para que ela fosse chamada por seu nome certo. Então eles vieram aqui, ambos, sob a chuva, para perfomar o ritual que repararia a teia do tempo onde foi rompida."

quinta-feira, outubro 09, 2008

work in progress, baby

[10:19] hai-ku.

furtiv'a manhã
entre o nosso sonho
ainda amo.


[11:08]

Aproveitando, do sono, a calma
em'omento de re-consciência,
agarra o real nos lençóis
no respiro do dia que nasce
antes que o devaneio passe
e das nuvens raiem os sóis
no frio frio da cama vazia
e desperte o vento da chama.


[11:16] injusto

Não quis nada
Não fiz nada
Nem achei nada legal
Quando caiu a chuva
- E todo mundo a louva -
Também m'olhei no temporal.

(pp. 53-55)

Billy Pilgrim padded downstairs on his blue and ivory feet. He went into the kitchen, where the moonlight called his attention to a half bottle of champagne on the kitchen table, all that was left from the reception in the tent. Somebody had stoppered it again. "Drink me," it seemed to say.

So Billy uncorked it with his thumbs. It didn't make a pop. The champagne was dead. So it goes.

Billy looked at the clock on the gas stove. He had an hour to kill before the saucer came. He went into the living room, swinging the bottle like a dinner bell, turned on the television. He came slightly unstuck in time, saw the late movie backwards, then forwards again. It was a movie about American bombers in the Second World War and the gallant men who flew them. Seen backwards by Billy, the story went like this :

American planes, full of holes and wounded men and corpses took off backwards from an airfield in England. Over France, a few German fighter planes flew at them backwards, sucked bullets and shell fragments from some of the planes and crewmen. They did the same for wrecked American bombers on the ground, and those planes flew up backwards to join the formation.

The formation flew backwards over a German city that was in flames. The bombers opened their bomb bay doors, exerted a miraculous magnetism which shrunk the fires, gathered them into cylindrical steel containers, and lifted the containers into the bellies of the planes. The containers were stored neatly in racks. The Germans below had miraculous devices of their own, which were long steel tubes. They used them to suck more fragments from the crewmen and planes. But there were still a few wounded Americans, though, and some of the bombers were in bad repair. Over France, though, German fighters came up again, made everything and everybody as good as new.

When the bombers got back to their base, the steel cylinders were taken from the racks and shipped back to the United States of America, where factories were operating night and day, dismantling the cylinders, separating the dangerous contents into minerals. Touchingly, it was mainly women who did this work. The minerals were then shipped to specialists in remote areas. It was their business to put them into the ground, to hide them cleverly, so they would never hurt anybody ever again.

The American fliers turned in their uniforms, became high school kids. And Hitler turned into a baby, Billy Pilgrim supposed. That wasn't in the movie. Billy was extrapolating. Everybody turned into a baby, and all humanity, without exception, conspired biologically to produce two perfect people named Adam and Eve, he supposed.

quarta-feira, outubro 08, 2008

infantil

Mariazinha carregava uma lancheirinha com a merenda. Joãozinho filava a comida do amiguinho ao lado. Mariazinha derrubou as bolachas no chão. Joãozinho riu. Mariazinha chorou. A professora ralhou com os dois.

Pequeno João chegou em casa batendo a porta. A mamãe pôs ele de castigo. Pequeno João respondeu. O papai deu uma surra nele. Todo mundo ficou irritado. Pequena Maria não olhava mais o pequeno João direito.

João matou aula. Maria foi atrás dele. Os dois sumiram por horas. Ninguém procurou eles - mas eles se procuraram -, ninguém sentiu falta deles - mas eles sentiram na separação -.

João viu a água correndo sob a ponte. Maria viu as areias empilhando. João era João Velho. Maria era Maria Velha.

E João, ainda João, cansado de tudo e de nada, trabalhava em árduos turnos para arranjar dinheiro. Ele tinha ainda, pelo menos, 50 anos, imaginava. Ele tinha mais. E o dinheiro deu. Ele comprou um diamante de presente e todo mundo chorou e chorou, mas João não ria mais. Ele chorava com os outros, feliz em fluxos de lágrimas. Acabou o churrasco e a cerveja, eles tomaram banho e se deitaram no escuro, se procurando a noite inteira. Mas todo mundo notou quando eles não voltaram.

E os filhos choraram, os netos choraram e os bisnetos - que tinham recém ouvido a história de como João seguiu Maria até o cinema, quando ela andava de mão dadas com Pedro, e gritou com lágrimas nos olhos "Maria, não me deixe! Eu te amo!" envergonhando todo mundo que tava lá porque, Velho João de voz rouca, a maioria das pessoas não ama de verdade e se envergonha com amor genuíno - choraram também.

E era tanta lágrimas, mas tanta lágrima, que Maria e João riram. Juntos. Uma última vez, como se todo o choro fossem as bolachas sujas no chão.