segunda-feira, maio 24, 2010

educação

Seu corpinho era um quase nada, a vassoura nos seus braços muito maior em tamanho, muito mais notável -- ela varria e se cobria de fuligem, uma nuvem surgia do pó descansado no chão e a engolia, seu serzinho mirrado desaparecendo duma hora pr'outra e é isso: os mais fracos diriam que era tudo assim tão simples, acontecendo tão rápido, porque ela tinha uma grande facilidade em não ser; sua pouca carne, sua pele em mofo, seus olhos de um sem nada raso (por certo dormia e nem um sonho tinha; ou se vinham eram incômodos, reviventes do dia vivido, e neles ela varria e sumia na fuligem, de novo e denovo edenovo); mas era só por dó que o mundo nem incomodava, não dava atenção que fosse. Ela, meninha, varrendo... e o pó; é uma história inteira.

Só que era um dia que de tão claro mudava as coisas, suas mãos sujas s'abriram para um presente (os dedos eram como todo o resto: finos, ásperos, ressecados, cobertos de sujeiro), um doce bem grande e de açúcar, de tão bonito fazia ela até mais rota - ela comeu e enjoou, mas achou, meu deus, ela não sabia palavra para essas coisas e morreu de medo de tudo o mais que tinha no mundo porque aos olhos delas tinha de tudo e ela podia provar, ela podia ser diferente! -, mas pelo presente ela teve que fazer uma coisa, nada vem de graça, nem bondade. A mocinha ensinou uma música, e treinou com ela, disse que ela podia cantar para sempre, que música é essa coisa assim, se aprende e então é sua, e quanto mais sua ela é, mais se canta quando mais sozinha se está, você entendeu? sua cabecinha fez que sim, e ela sorriu, porque o mundo tinha segredos também, vai ver ela mesma era um!, e agora tinha tudo que se via e mais uma porção imensurável de coisas que não se via mas estavam acontecendo agora, ao mesmo tempo e o tempo todo e ela pode ouvir o mundo ao mesmo tempo, na sua cabecinha inventada, que de tão pequena mal cabia uma voz, quem dera reter o peso do mundo! Então ela teve que dar as mãos para outras meninas e cantar dançando em roda, depois ela sozinha cantava para essa máquina, e tinha um vidro com uma menininha dentro, que cantava com ela junto, era uma máquina que não deixava ninguém sozinho, era isso que ela era, e aí ela se envergonhou dos olhos da menina-da-máquina, olhando ela, as duas juntas Ciranda cirandinha vamos todos cirandar.

A moça falou obrigada e levou tudo embora e as meninas também foram. Ela estava sozinha de novo; a grama verde era trespassada pelo sol, o céu armava tempestade ou chuva mansa, seu azul se perdendo e desbotando, todo mundo ria e tinha alguém, e para ela o que ainda tinha? Tinha o mundo inteiro para brincar, mas ela era tão pequeninha - com trinta e sete anos ela ia ter saudade, porque pequena ela cabia em mais lugares, se escondia mais fácil e, sozinha, podia cantar só para si que O anel que tu me deste era vidro e se quebrou, o amor que tu me tinhas era pouco e se acabou, por isso pequena Maria entre dentro dessa roda, diga um verso tão bonito, diga adeus e vá embora.

sexta-feira, maio 14, 2010

O rosto dela era um contorno que dançava, mal se via um olho, a boca traçada apenas, se ela falasse alguma coisa, pelo menos... não tinha dia, a noite era uma eternidade e era fria, ela pálida de uma brancura dum nada natural, súbita, uma folhinha de papel, ele podia desenhar nela todas as coisas do mundo que fossem bonitas e feias, mas teria que viver com os erros de seus rascunhos, também. Tinha luz nela e o resto era escuro, caminhava ao seu redor sentado na cadeira, podia ver ela daqui e dali de todos os lados, muitas coisas para ver, as pintas que pintavam seu rosto e eram até bonitinhas, os cílios que encurtavam, as veias nos olhos de tanto ela ver as coisas, os pelinhos da pele no rosto, desses que se vêem só contra o sol, nesses dias de calor que é quente tanto que não resta fôlego prum mínimo qualquer de amor entre dois estranhos, ele a contaria fingindo que ela se importaria, sendo talvez tão educada que podia mesmo prestar atenção, "eu gosto muito de ouvir as pessoas falando, porque as pessoas falam tantas coisas estranhas quando se presta atenção de verdade", ela entediava murchando, sumindo dentro da areia, ele metia seus dedos para apalpar um áspero roçar de nada, cabeceando areia adentro sem ter medo de sufocar, ela se perdia numa imensidão, batia uma brisa que a levava embora, a imagem dela distanciando como um sonho recém-sonhado, cheio de gosto de uma realidade que vai desvanecendo, indo longe, se percebendo um crente delírio que, então, já não é mais; ela se perde entre todas outras coisas suas, ela é a lembrança da menina na sala escura, talvez linda, como ele poderia saber?, se escondendo num esquecimento entre muitas outras meninas de sonho que duraram tempo o bastante para um suspiro e nada mais.