sábado, abril 17, 2010

biblioteca

A primeira vez que ela entrou na minha biblioteca não pediu licença, mas nem precisava, eu muito certo daria (não que a biblioteca fosse minha, mas). Ela usava um vestido - coisa que eu gosto muito, especialmente um bonito, mais ainda um que é banal; vestidos de festa m'enfadam, até mesmo fora do corpo com o corpo sendo meu - rendado no cós, tinh'as pernas brancas, e os braços e o rosto, o cabelo era muito muito preto, absorvia um pouco o ao seu redor, até irradiava como se dali fosse escapar a noite. Eu levei horas para repará-la, ela que procurava e procurava alguma coisa, nos livros e nas páginas do livros, em todas as coisas. Tinha uma moça que cuidava da biblioteca, nunca vi gente mais sem graça, deve ser de tanto ler; foi falar com ela, porque a menina parecia muito perdida - era alguma coisa na forma como ela abria a boca e então mordia o lábio, resmungava e fazia caretas vazias - e a menina deu um sorriso meio doce, educado, vi a boca mexer falando e a mulher indo embora.

No próximo dia eu precisava estudar, entrei e sentei e lá estava ela; tinha tirado o vestido, trocado ele por roupas bem normais, mal lembro a cor, mas ela tem um jeito de azul-claro, não sei bem explicar. Tinha uma vontade além de mim que me fazia olhar para ela, por isso eu vi quando a moça da biblioteca veio, falou um pouco; a menina respondeu e respondeu sendo específica, a moça apontou para a porta e a menina deu um sorrisinho resiliente e um aceno de cabeça de Obrigado e continuou mexendo as coisas.

No dia seguinte tinha um amigo comigo, mas eu ainda podia vê-la sobre os ombros dele; então eu já podia ouvir o farfalhar das páginas na sua mão, o som seco dos seus sapatos, acompanhar a respiração - tinha horas onde ela brincava comigo, trancava uma inspirição ao momento que lia mais longamente uma passagem e eu antecipava o encontro dela com o que procurava, apenas para expirarmos juntos e desapontados - e, com um pouco mais de tempo, ler em seus lábios as passagens exalando c'ortelã no silêncio de seu poetizar... enfim, ainda não a conhecia. Comentei o que via com meu amigo: E daí?, ele respondeu.

"E daí nada, oras."

"Acho que a sua senhorita não iria gostar de vê-lo tão admirado de outra mocinha", ele riu. Mas como ele podia dizer alguma coisa? Não havia sequer relanceado a imagem dela!

"Eu só acho estranho, só isso, ela estando sempre aqui e tudo", disse num meio murmúrio, fui ler e naquele dia eu não salvei a vida de ninguém, nem fiz nada importante e essa foi a minha vida muitos e muitos dias entre o nasce-morre.

No quarto dia, eu cheguei antes da biblioteca abrir. Ela sempre me antecedia, queria saber quando chegava - dei de cara com ela recostada na porta, a cabeça caída contra a parede; houve um súbito momento de um pânico muito profundo, então sentei com a minha cara de sono no lado oposto da porta, e espiei o dormir dela. A boca entreabria, o corpo mal mexia; quis esquentá-la, dá-la um beijo e dizer que tudo ficaria bem; mas não tinha garantias do valor de nada disso. Já dentro, não li nada que não ela, seus passos, suas contracapas - por muito tempo ela estava contra luz, mas eu que estava transparente. Quando ela se posicionou bem, fui ao lado contrário da estante; pelas frestas sobre os livros, encontrei os olhos dela, círculos esverdeados que olhavam baixo, vi-a linda como se podia ser e fui procurar uma poesia tão bonita quanto. Esse foi meu dia.

Não dormi a noite, acordei o sonho inteiro passeando pela biblioteca, encontrando versos nunca escritos que eu podia comer para saber o gosto, co'ela espectrando ao meu redor feito o reflexo dum pesadelo na ameaça de irromper. O despertador tocou com a minha certeza de que Agora chega.

Ia o dia, entrei na biblioteca, toquei-na o ombro e Com licença, pelo amor de deus, eu não aguento mais te olhar aqui folheando esses livros sem fazer mais nada por horas e horas nem ler mais do que uma frases e isso tá me enlouquecendo tanto que eu já estou quase completamente apaixonado, então me diz: o que você tá fazendo.

Ela me olhou com graça transbordando, "Procurando".

"Procurando o quê?"

"Uma saída."

Meu sangue resolveu se pôr como se meu corpo inteiro fosse o céu; não soube porquê, mas meus olhos molharam - o cheiro dela me sussurrou que eu parecia chuva. Silenciados, pegamos livros, abrimos e folheamos. Não sei porquê, mas nenhuma resposta é tão simples como parece.