segunda-feira, março 31, 2008

Veludo

Meia gota de suor escorreu pela espinha, contornando vértebras numa dança não mais caótica do que a que sua cabeça fazia acompanhando o álcool. A jukebox arranhava uma música entre chiados que meio soavam como uma declaração de amor, escolhida por um junkie que só dividia a agulha com uma mesma pessoa, desejando ter com ela o mesmo fim. O junkie tinha desfalecido no banheiro, mole e sem graça, a dois passos do urinol. Ele mal tinha ouvido a introdução.

Aquela não era a sua música, mas era agradável. Todas as músicas eram agradáveis, todas as curvas eram agradáveis; das mulheres, das mesas, das garrafas vazias. Do cano da arma.

Quando a cabeça explodiu voaram engrenagens. Elas antes estavam alinhadas e giravam devagar, com uma fina ferrugem que se acumulava desde que ele abriu os olhos. Agora elas brilhavam clarinho na luz tênue, como estrelas em um céu de madeira velha, depois de passarem anos sem saber de quem era aquele dinheiro, de quem era aquela mulher, de quem era aquele sangue.

Recobrando a consciência, o junkie juntou cada engrenagem solta e guardou no bolso. Ele caminhava confiante, com o sangue fervente saltando-lhe as veias e no silêncio do jukebox sem moedas. O silêncio o incomodava, dava espaço demais para pensar.

Ele alimentou a jukebox com uma engrenagem. Enferrujada, com uma rachadura em cicatriz aberta; a música que saiu não foi a que ele tinha escolhido. Ela nem 'tava marcada no setlist.

Ele não gostou dela. Nem da próxima, nem da outra. Mas a quarta era muito boa e ele nunca tinha ouvido. Ele passou o dia inteiro lá, testando uma por uma.

E antes de vomitar suas próprias engrenagens na patente do banheiro, desejou que nenhuma delas fosse uma canção de amor.

sábado, março 29, 2008

Café

Por que você nunca escreveu sobre mim, ela perguntou com olhos ainda cansados sobre uma xícara de café fumegante.

Ele só conseguia sentir o cheiro do café, que dissipava o cheiro dela. Naquele momento, ele nem sabia se ainda...

Porque eu não poderia te desejar mais, você não pode voltar a ser platônica, ele falou. O domingo entrava úmido pela cortina entreaberta, com o céu acinzentado de um jeito que sempre o fazia se sentir estranhamente vivo, podendo ficar em casa sem fingir ser feliz.

Mas você escreveu sobre todas as outras, ela insistia, com a xícara na mão. Ela nem estava tomando o café e isso o irritava um pouco. Ele se virou para não ter que vê-la e resolveu encarar o domingo em exposição na janela.

E nenhuma delas foi minha de verdade. Nenhuma delas sequer existe, elas podem ser qualquer coisa, recatadas ou putas e eu não saberia dizer, porque para mim elas são todas iguais. São todas apenas palavras.

Eu gosto das suas palavras.

Ele tomou um gole de café, sabendo que o dela esfriava na mesa. Queimando a garganta, ele sentiu quando o líquido despejou-se sobre o estômago totalmente frio. Eu sei e agradeço, ele falou vendo como a manhã despejava-se lenta sobre o mundo às 8 horas, mas eu não posso amá-la e beijá-la e escrevê-la.

Eu prefiro suas palavras aos seus beijos.

Ele sorriu, percebendo que no reflexo do vidro ela o olhava sem tocar o café. E ele não precisava mais fingir que era feliz.