quarta-feira, novembro 12, 2008

voo/doo

Mas olhando para os azulejos da parede da cozinha, azulejos meio creme de amarelo escuro queimado sujo, com esses padrões quadradinhos, cada padrão no seu azulejo e cada azulejo lado a lado contornando toda a cozinha, em argila seca e desenhos de esmalte reluzente, de coisa velha, de cozinha da casa antiga da vó, antes dela se mudar para um apartamento no centro a certa altura de uma dessas ruas asfaltadas sem as árvores e as casas de jardim de antes; ele sentiu fome. Fome de bolo recém feito, retirado do forno, úmido do chocolate derretido que dava, mesmo valendo a pena, dor de barriga.

E esperando na mesa de tampo frio e café quente à frente, pondo açúcar e mexendo mexendo bem acordado no dia ainda cedo, ia e voltava os olhos de uma porta para outra, bem em silêncio. E uma porta de um lado levava para um lugar estranho, um não-corredor e não-aposento que ligava cômodos, mas sua indefinição era incômoda e também era de azulejos por todo lado, embora outros, menos no teto; a outra porta era pro resto da casa, casa bem definidida onde cada metro é ou sala ou quarto ou banheiro ou corredor ou parede.

Não tocando em mais nada, absorto pelo tempo gotejando na têmpora pra irritar sua espera, ele houve ao ouvir passos como coisa-sólida. Senta a velha pela porta da não-casa, limpando as mãos de terra e fedendo à galinha viva, galinha de cocô e ovo chocado e cacarejos insistentes durante o dia a mastigar milho e ciscar o chão, bicando escondida durante a tarde os pintinhos filhotes de outras. A velha se chega para as cadeiras e ela é toda arqueada, de cabelos brancos e vestido largo florido, revelando meia canela e varizes roxeadas, enrugada toda como se tivesse passado a noite jogada no chão do quarto; e puxa a cadeira arranhando o chão com barulho, senta cansada em repouso entregue e estende as mãos na mesa.

Ele olha pros olhos, que brotam como sabe-se-lá da pele, coisa qu'ele nunca viu assim ou bem assim ou sequer mais ou menos assim, para ser mais honesto. Hesitando, ele cede ao impassível da velha depositando as mãos sobre as dela e, áspera, ela corre com os dedos a mão dele inteira. No silêncio dela, ele segura o fôlego, e ela nem murmura nada "interessante", nem "oh", nem quaisquer outras interjeições; mas deve ter mais do que tédio nas linhas, deve ter pelo menos morte que segue até o fim, na certeza de que ele morre [e, ao mesmo tempo, na certeza de que ele vive até morrer, sendo duas certezas, assim].

A velha limpa a garganta, escoando o pigarro, joga as mãos dele de volta ao tampo frio e levanta, arrumando o vestido para baixo e caminhando lenta até o fogão. Não queima a lenha mas liga o gás, acende o fogo e ferve a chaleira, preparando o cozer do feijão. Ele toma e queima impaciente o resto do café, se prepara pra sair, mas sente nos pés um peso de toneladas, d'onde ele se arrasta pouco mais do que dois azulejos pra frente. Ele pergunta.

A velha vira, se ri, se acha graça, se mexe agora com graça de bailarina, de pena ao vento, trigo à brisa, barquinho à deriva, puta à cama. Ela peg'o rosto dele na mão, beija a testa, abençoa o caminho do caminho que segue e leva embora pela porta que ele nunca entrou.

terça-feira, novembro 04, 2008

ser curto é ser grosso

É um questão de pertinência, sabe. A impertinência é perigosa; quanto mais abre-se a boca, mais chance dá-se às borboletas de voarem embora encanadas pelo canto. É, em meio tempo, no meio do tempo das coisas, qu'ela olha de cara séria quando ele pergunta, Mas você não é empregada?, em resposta de "Sim, mas não a sua" e ambos seguem partidos lado a lado.