sábado, dezembro 04, 2010

as estrias de maria

(de 04 de dezembro de 2008)

Estava, de fato, na perseguição implacável de um único momento retomado em'inha memória, de fogo fátuo, quando posta ao espelho alisava a recém-feita barriga. Tinha jeito suave de esticar a pele, correr pelas marcas, contornar as estrias com a ponta dos dedos. Desejosa, via nos olhos lágrimas que teimariam em brotar?, porém quieta, não me reclamava nada, sequer nada dizia; pelo contrário, entregava-se a isso sempre quando ia-me longe e a solidão caia-lhe como coberta ou proteção.

No deitar sobre o meu corpo, no abraço dos meus braços, quando fazia-me do ombro travesseiro ao reclamar de todo cansaço e sono dos dias, afastava minha mão quando era alcançada a barriga, cobria-a novamente com a camisa do pijama e pedia-me sossego. Cruel, cruel, ignorando a forma como me havia dedicação e saudade nas mesmas linhas que a desconfortavam, calava-me apenas pela beleza que ela apresentava, agora clara como das mais cristalinas; isso e pela marginalidade da minha adoração, quando ela dorme profunda e eu acordo, como que despertado por mágica, tamanha a pontualidade, e ergo quieto as cobertas, escapo pela camisa, e dedico um único beijo ao umbigo meu.

Era tudo muito secreto, de todo escondido. Havia, por isso, graça das maiores no quão sigilosos nós éramos. Silenciosos, porém, fazíamos do barulho um caos e, na minha furtividade, o murmúrio do mexe-mexe nas cobertas me sobressalta, e escapo antes que desate o escândalo. Debruçado sobre o berço, busco-a no colo quando ela arrisca um choro, co'esse jeito de se franzir toda tão puxado da mãe, mas se cala no meu abraço por mais um pouco, deixando o resto da casa dormir.

quarta-feira, outubro 27, 2010

sombra pelas águas

Apareceu súbita: vinha correndo e tinha nos olhos um brilho fanático, uma coisa de fogo queimando por dentro, que, saída para fora, tomava o horizonte num farfalhar selvagem, dando cor de vermelho e tantas outras, carbonificando firmamento acima até a noite. Lia-o as mentiras como quem lesse um poema, achava rima e graça no jeito tolo de enganar no que dizia, não sabida dos jeitos cruéis de invadir um coração pela garganta - e então seguindo as veias, passeando o corpo todo, até o sangue mesmo resolver que ela voltava e acabava bem no músculo, com esse desinteresse sem maldade que só fazia a situação mais difícil - e, por isso e muito mais, era uma coisa perigosa.

Ele não sabia como tinha a aceitado tão sem luta, e a cada momento desimpedido, a mente limpa, ela surgia numa lembrança e ele era todo questionamento; embolsava as mãos, coçava a nuca, suspirava rangendo os dentes, andava círculos e ao redor de coisas paradas, chutava coisas caídas, latas e poeiras e folhas de plantas secas. Não encontrava resposta para o descontentamento que era tê-la tão adentrada no seu ser, ao ponto que ele misturava sua solidão à imagem dela, sempre repetindo as coisas mais lindas em que ele a vira, as roupas favoritas e os trejeitos mais escapados, ou o sorriso mais quente e as palavras tropeçadas e bêbadas de um dia bom. Fosse mais adepto do drama, de impor uma gravidade de colosso a esmagar suas certezas, estaria aos prantos num pé de cama, induvidado de que ela era a paixão da sua vida - não apenas de carne, de mulher, de amor e todas essas trocas, mas de uma coisa a ser compreendida e estudada, ao ponto de conhecê-la aos contrários e distorcida, através d’água da chuva e da noite, ou piscando colorida num movimento incapturável entre as luzes de um bar - e sua dedicação seria a vida ao mistério e farsa que ela era.

Acontece que ela, muito despercebida pela doçura que era seu encanto, dava ritmo a sua vida sem contar com ele caído (de amores), e seguia distanciado como que sem forças para lutar contra o vento - e nem podia, e isso era todo o peso da sua alma, essa incerteza lavada que apedrejava seus caminhos, lameando os pés trôpegos e sujando o corpo, impressionando que um dia ela fosse toda rota e as sebes do vento finalmente a deixassem em frangalhos e sua última lembrança fosse onde o nome estivesse anotado e escrito, porque o corpo já era há muito e fora emborcado pelo infinito -. Então que ele, já há muito apaixonado (talvez que por só um minuto, mas a eternidade parecia, mesmo que só pelo todo esforço do corpo em senti-la assim tão próxima), passou a persegui-la com olhos descontrolados, tentando especializar na arte de fechá-los ou desviá-los antes que ela os percebesse, indo e voltando dela para uma janela, ou dela para o céu, ou dela para o livro que ela lia, porque não tinha nele ainda a vontade de possuí-la nos braços nem saber as graças da voz; não arriscaria esse momento sublime de farrapo humano, de perder o ego e implorar uma presença alheia, essa coisa doce e arisca que é domar o selvagem de um novo amor, pelas palavras dela que carregavam o peso dogmático de dizer que sim ou não. Arrepiava, gemia, sonhava acordado em cada passo, não deixando um único momento silencioso de calma - ela seguia, pouco sabida, sendo gentil quando podia e, isso o atormentava, ela não fazia porque convia, mas porque era, e só o confundia ainda mais. Essa bondade negra, de alegria sem sentido, ela cheia de uma sem-timidez de ser uma tola; ela era lambuzada de um paraíso traído, perdido na impressão de pureza dos seus olhos, na franqueza das palavras e dos jeitos carinhosos de fazer qualquer um especial -- ele temeu tanto estar tomado pelos encantos que um dia, os dois novamente embriagados, corpos caídos próximos, ele resolveu não a olhar, escapando da hipnose das formas e os movimentos ritualísticos de seu corpo: aconteceu que a voz dela inda mantinha o mesmo apelo, cada palavra dita de um jeito translúcido com que ele pudesse atravessar com os olhos as intenções, e como a vontade dela - o sopro do vento, enfim - aproximava da sua, como atraídas ou magnéticas de desejo, disparava seu coração. Num instante mesmo, ela aponta uma menina e pergunta "Ela não pára de olhar, porque não vai lá e beija ela?"

"Assim como o cheiro da comida sendo feita, a quem está saciado causa enjôos, o mesmo acontece a um coração tomado, apresentado a possibilidade de um outro amor", respondeu.

Ela gemeu rindo-se, "Você fala de um jeito tão estranho ás vezes".

"Isso é ruim?"

Ele via no riso dela, nas curvas do rosto, no jeito do resto, a negação formando-se nos lábios "Não--", o sossego dela, como não tinha ele pensado antes?, tinha gosto de cerveja e morava na superfície da sua boca.

quinta-feira, outubro 14, 2010

(não)autobiográfico

you losin all the fun, man.

quando se atualiza o post, o nome continua o mesmo. aqui jaz, em primeira lápide, maria amava perdidamente (é verificável); seguiu-se outra história de Maria, menina mais linda desse mundo (apesar de nem por dentro nem por fora), que também se foi (minha doce maria se perde, criação etérea de túmulo no vento).

mas a maior graça é o poema perdido, que sempre me arrependo (fui besta e mesquinho e acabei pagando as contas), do qual descobri o nome recentemente: daquilo e papapá. não sei mais do que se trata, mas acho graça e lindo-lindeza.

poetizo, meus amores & não poetizo meus amores. é do que se faz a ironia: um muito de verdade amarga.

beijos!

segunda-feira, outubro 11, 2010

todo domingo é maligno (uma meia conversa)

[paranóia pública é mais sem graça, mas enfim].

nem por isso, (...). não lembro de te ver d'olhos abertos além da meianoite sem um copo de cerveja na mão há tempo tanto que talvez nunca.

mas enfim, domingo anoite tudo é meio de lado...

na verdade, por mais incrível que pareça, é um ponto por demais válido. ignoro.

aliás, pimpimpim raio de lua pimpimpim solto no tempo lalalalala
cada coisa que me surge na cabeça eu hein.

[ressaltando do cadáver da conversa: vejo validade no meu ponto, mas tenho preguiça demais em me fazer literal. que fique o literário, então]

e essa música nem é romântica, não pode culpar o amor... mas é velha, então culpa-se a noite.

agora, juntos: ouviram, do ipiranga, as margens plácidas

nossa, o john smith e a pocahontas morrem longe. eles sequer se casam e ela ainda traz ao mundo os filhos de outro cara. até o hino nacional foi mais romântico.

e quem é que tem descendência portuguesa? é alemão, tsc tsc.

e ainda tem a bundamolice de dizer que eu que não a penso com afeto o bastante... mas ok ok, seus seiláoquê devem ter te confundido.

duvido.

de tudo.

[menos do meu amor]

ainda é das piores comparações possíveis.

nível disney de romance é quase nível nenhum.

aiaiaiai

também te amo, oras.

sábado, outubro 02, 2010

domingo, setembro 05, 2010

god only knows

Quem é ela?, com sua fala pequena, sua cor desbotando, suas perguntas vazias, suas respostas sem sangue, dizendo-me coisa sobre coisa que eu esquecerei no rodopio de suas palavras, sua história que se borda intermitente, cortando as pontas e dando laços sobre superfícies bonitas, de brilho barato: sua cama de setim, prostituída pela tecelagem, manchada de restos de corpos pulsantes, de suores silenciosos que secam lentos no inverno, colando-se à pele que se levanta, que se lava e se perfuma. Quem é ela, com seu nisco de silhueta, seu corpo suave bom de se tocar, seus olhos de brilho passageiro e sonhos translúcidos de grandeza, sua mágoa profunda do passado e do futuro, mas sua paixão se consumindo no presente, homem a homem, boca a boca, puxando a alma com a língua e a mastigando impiedosamente com os dentes, cheia de fome e sede, anêmica, voraz. Quem é ela com o cigarro na boca e o cigarro na mão, tragando de olhos fechados, com as costas arrepiando, com os pés descalços, com a calcinha de ursinhos, com os cabelos bagunçados, fingindo que posa para um quadro italiano com um lírio nas mãos. Quem é ela, deitada nua no chão da casa, estendida ao sol da janela na manhã de terça-feira, dizendo mijo merda e caralho, chamando o gato de buceta e sentindo ele roçar os bigodes em sua coxa, com a cabeça lembrando do infinito cordel de impropérios que aprendeu na escola, embaixo das carteiras. Quem é ela, com a pele clara coberta de frio, apavorada da morte sozinha, com os olhos retendo choro, chamando pela mãe fantasma com a vozinha de criança, escondendo a cabeça com o lençol, querendo conhecer alguém no parque, quinta-feira, e se apaixonar como se tivesse quinze anos. Quem é ela, olhando o telefone e não lembrando mais meu número, não lembrando mais meu nome, com a cabeça no mundo da lua, me vendo na rua e se perguntando quem eu sou.

your protector

E ele trouxe flores brancas que ela guardou em um vaso sobre a mesa e, semana antes dele voltar uma outra vez, o vento já tinha levado cada uma delas e espalhado suas mortes pelo chão.

Ele chegou, então, entrando pelo escuro da casa, e a luz do lado de fora tinha acendido cada um dos pedaços brancos, o sol dando uma última vida frágil às plantas. Procurou no vaso a água limpa e não disse mais nada. Varreu todas e deitou-as no jardim.

Ela chegou, entrou na casa e cobriu a boca com a mão; seus olhos de lágrimas dúbias - seus retalhos de jardim consumidos e desprezados, mas só pôde entressuspirar: "Amor?". Ele surgiu primeiro pelos olhos acendidos pela sombra, depois num sorriso e então a sobrancelha erguida; estavam os dois presos a um beijo bem vindo e mórbido, até ela sussurrar ao pé da orelha "Cuidei delas com tanto carinho...".

Ele a empurrou longe com as mãos, colocando-a nos olhos; via-a triste e queria cuidar dela, mas ela virava o mar da vista em vergonha. Quis contar a ela da desimportância das coisas, que as flores são flores e só, que a morte é inevitável; quis contar que teve medo de beijá-la uma noite e sentir sua carne sumindo de seus lábios, vê-la se desenhar em uma outra mulher estranha, de linhas tortas e reflexos opacos; que imaginou valsar ela por um palco de saudade, e soprar nela o ar de vida que enchia seus pulmões quando ele a tocava. Engasgou.

Disse só: "És uma tola" e a abraçou.

sexta-feira, agosto 13, 2010

réquiem

já te vejo
nas coisas que ainda restam
e no silêncio
da tua distância
e nos meus dedos
ainda mais frios

já te vejo
no escuro do inverno
e dormindo teu sono
dentro da cama
e nos meus braços,
mas longe de mim

já te vejo
nas coisas guardadas
e encontradas
que não dizem nada
e todos os meus segredos
arrependidos

já te vejo
pálida malumorada
e com ciúme
teu rosto lindo
e ultrajado,
estando errada

já te vejo
guardada feito uma coisa
para brincar no domingo
e desinteressar na segunda
para perder uma peça
e chorar como criança

já te vejo
na minha filha
pequena, na rua
errando as palavras
e rindo
e chorando
com a mesma voz tua

já te vejo
indo embora cansada
e sendo esquecida
e te ver os olhos secos
chegando mais perto
e errando outra vez.

segunda-feira, agosto 02, 2010

O munda fazia como o som de vidro contra vidro, a manhã logo no início. Tinha, então, uma fraqueza de coisa pequena de não dormido, um silêncio escondido pelos cantos dos pássaros - tinha uma senhora velhando num banco, o sol chegando até ela compaixonado, que não ouvia o que ele, só, falava, porque seus ouvidos eram dos pássaros e deles apenas; ele dizia, então-- um suspiro, que se perdia entre pios e farfalhares. Logo, mais um.

E ali ele estava, o jardim imenseando verde a sua volta, flores nascendo em botão, árvores e céu (prédios seguindo), mas seus olhos brilhavam delirantes, o mundo inteiro resumido encaixotado num único semblante de significado - que dormia, longe do seu saber, num malencaixado sono sobre um sofá amigo, de onde saiam sonhos de-porreados sobre coisas absurdas, ursos florescentes, crianças descontroladas, armas & balas de algodão doce, enfim. A velha viu-o, ela já levemente cozida, suas rugas marcadas por sombras escuras, seu rosto continental e lindo, franzindo 'inda mais num sorriso, seu jeito fraco franco, Que foi, meu menino?

Ele olhou, dela os olhos azul esverdeando, pensou que talvez dela fosse mesmo o mundo, então não seria ele, mesmo, um menino dela? se ele podia ser de outra, tão malconhecida, umas poucas horas de madrugada juntos... velha engraçada, queria ouvir a risada dela, fraca e verdadeira e divertida; ele estava extrapolando. Levantou do chão, batendo a grama das calças, sentou no banco bem ao lado dela, o cheiro dela suavizado (pelo tempo, idade, sol vento): A senhora quer a versão longa ou a curta?

Sabe que eu não tenho muito tempo? - os olhos dela diminutos ante o sol, fecharam-se por inteiro olhando pra cima, vendo calor - Se a conversa se anda muito, meu namorado fica ciumento...

Ele riu, a risada dela guardada esperava a dele para sair, senhora do riso envergonhado.

Tudo pode ser resumido... - ele começou; a velha era namorada do sol, por dentro ela sabia que ele nascia para ela, só saindo ao céu pela chance de vê-la, e no dia em que ela morresse, ah, tinha ela pena da humanidade, porque no primeiro dia o sol viria sem a encontrar, até achar seu corpo desfalecido sendo entregue à terra; o dia choraria de enciumado, a chuva de luto seria uma semana, e por pelo menos um mês a escuridão seria o firmamento, porque o sol perderia a vontade de sair de casa.

No instante mesmo, acordava a menina, sentando no sofá, deixando cair lençóis e travesseiros no chão - na boca, com a sede, um gosto açucarado, mas não lembrava mais o que era; não sabia como não tinha acordado sobre o tapete, o sofá tão minúsculo; foi tomar água, a calcinha tortamente guardando a bunda, a camisa fedida; no meio do gole, lembrou que sonhava em comer nuvens cor-de-rosas, foi até a janela--

... n'eu estar... - ele concluia, vendo uma cortina ganhar vida e dela florescer seu significado, a cara recém-desperta procurando nuvens com um jeito de criança; ele murmurou "...apaixonado" e os olhos de ambos s'entrecruzaram num sorriso.

sexta-feira, julho 16, 2010

Nós comiamos nossa comida de nossas próprias mãos, sentados em silêncio no quarto escuro. Tuas mãos de porcelana, igualmente frias; imaginava guardá-las nos bolsos, evitando que congelassem. Disse "tudo que tu veste além da calcinha é um desperdício" e, por isso, esperava um sorriso que não veio.

Usavas teus óculos escuros e muito grandes no rosto, cobrindo teu espanto quando no céu uma nuvem de asas frenéticas singrou infinito-além. Disse "não te preocupe que não são anjos para te levar embora" e mais um nada. Pombas brancas, o céu azul; o ar do lado de fora para se respirar.

Te puxei para mais dentro da cama, cobri teu corpo com o meu; minhas mãos no teu pescoço; teu corpo emagrecia à ossos nus, nossos olhos se refletiam se vendo mil vezes, disse "uma palavra certa e és liberada do cadafalso", mas desses teus milolhos não saiu nem uma lágrima. Sentindo saudades da tua boca, beijei-a mesmo seca e pedi desculpas.

Meiodia tu ainda dormias, decidi que ia embora. Comecei a separar tuas músicas das minhas, até que carlos gardel disse que "não"... disse meu "ótimo", irresoluto, a lembrança de ti já sobriando, compondo-me jurinhas de amor bobo sobre melodias de tango "onde é que tu ouviste isso? costumavas frequentar algum bordel?"; então tu me corrigiste, "puteiro, por favor", a educação marcada, sorri agora e então, sabendo porquê te amava.

Te olhei no sono, ia novamente para dormir ao teu lado quando teus olhos fizeram-se despertos; tinhas olheiras e bochechas marcadas, o rosto inteiro amassado surpreseando ao me ver tão do teu lado. "Bom dia?", tentaste quebrar o meu silêncio, mas eu me divertia. Te beijei na testa, evitando o veneno de teus lábios, deitei vendo o teto, a lâmpada apagada, tudo cinza no bem-cedo da manhã, e disse "sabe que ainda eu penso que te amo?". Riste-me, então - teria como saber que se agrada com tão pouco? - "É?". Minha cabeça fez que sim, virei-me ao lado... disse "é", e dormi.

quarta-feira, junho 02, 2010

A cabeça dela no meu lado, o cabelo dela loiro-loiro dourava no sol, brilhava tanto quanto, não se podia olhar para ele (não se podia olhar para ele sem se apaixonar), eu virado para um lado, ela para o outro, nossas cabeças se encaixando nos vãos de nossos ombros, a grama verde nas costas coçava, o sol caia bem de frente bem nos olhos, nós cegávamos e ríamos; eu fechava meus olhos e podia ouvir o corpo dela, o coração batendo e ela respirando, os sons dos movimentos curtos e contidos logo ao meu lado; podia ouvir a solidão toda ao redor no canto dos pássaros, nas vozes distantes, no seco do vento, no cheiro de mato.

"Nós devíamos compartilhar alguma coisa" - Por quê? - "Porque é o que faz um bom momento que se lembra para sempre" - É? - "É" - silêncio.

E então ela me disse, numa voz pequena feito um sussurro, contando de como ela tinha se apaixonado por um amor que tinha tudo para ser eterno e com isso ela quis dizer pelo tamanho, que era uma imensidão sem limites, ou assim a parecia porque ela era jovem e tentava ser romântica, gostar de flores, todas essas coisas bonitas como deitar juntos na grama e compartilhar alguma coisa, uma filosofia ou um segredo, sentindo o outro entrando dentro de si e ela entrando dentro dele, fechei meus olhos uma vez outra, entrávamos tudos uns nos outros, até que na lembrança ele era descartado no esquecimento de um amor novo, e do corpo nascia uma pele branca muito clara, porque ela era uma única dobradura de papel que eu fiz com as mãos, e eu podia sentir o frio no toque dela e fragilidade pequena de quando batia o vento ou o temor de que o amor fervesse apaixonado consumindo-a em cinzas impossíveis de se segurar nos dedos, manchando-me e sujas, espalhando pela grama e sobre meu corpo caído, deixando-me só num momento tímido em que ela não existe, sequer desempenha mais papel, mas ao pouco a reimaginava com sua voz ressurgindo em seus contos apaixonados, chamando-me de volta para a umidade de seus lábios, desejando uma vez mais um beijo que fosse, mas em que ela aquietasse com seus segredos e seu passado, me amando como se me perder fosse nunca mais encontrar um outro, e ela ainda me dizia da praia em verão quente, a areia pelo corpo, a água quebrando para embalar seu sono, o ser acordada por um beijo, o cheiro da pele queimando tomando conta do quarto, impregnando suado no lençol que os encobria, sua voz falhando na hora em que ela o agarrava as costas sentindo seus corpos pressionados e enudecidos, minha atenção se foi para o céu, podia ouvir as asas dos anjos soprando ao meu lado enquanto cantavam os risos de minha desgraça, compartilhei apaixonadamente a redenção de meu romantismo, enquanto as palavras delas desbotavam de imagens ao me dizer que eles juntos conversavam gozados madrugada adentro, dos planos que eu achava tão fúteis, agarrei-me as nuvens com formas distantes, como se nelas se escondessem as palavras que eu procurava para ir embora, mas cabia apenas chuva que não queria cair, eu sendo a testemunha eterna de um coração partido, a voz ainda me vinha mais distante num último marchar de suspiros, trazendo na costas a perdição de amores que nunca foram, eu ri uma última vez e gargalhei até engasgar com a hilariedade do mundo. Sentei, olhei bem dentro dos olhos dela, amando-a tanto quanto amaria, beijei-a a boca, dizendo "Isso foi um grande erro", ofereci minha mão e com elas entrelaçadas fomos embora.

segunda-feira, maio 24, 2010

educação

Seu corpinho era um quase nada, a vassoura nos seus braços muito maior em tamanho, muito mais notável -- ela varria e se cobria de fuligem, uma nuvem surgia do pó descansado no chão e a engolia, seu serzinho mirrado desaparecendo duma hora pr'outra e é isso: os mais fracos diriam que era tudo assim tão simples, acontecendo tão rápido, porque ela tinha uma grande facilidade em não ser; sua pouca carne, sua pele em mofo, seus olhos de um sem nada raso (por certo dormia e nem um sonho tinha; ou se vinham eram incômodos, reviventes do dia vivido, e neles ela varria e sumia na fuligem, de novo e denovo edenovo); mas era só por dó que o mundo nem incomodava, não dava atenção que fosse. Ela, meninha, varrendo... e o pó; é uma história inteira.

Só que era um dia que de tão claro mudava as coisas, suas mãos sujas s'abriram para um presente (os dedos eram como todo o resto: finos, ásperos, ressecados, cobertos de sujeiro), um doce bem grande e de açúcar, de tão bonito fazia ela até mais rota - ela comeu e enjoou, mas achou, meu deus, ela não sabia palavra para essas coisas e morreu de medo de tudo o mais que tinha no mundo porque aos olhos delas tinha de tudo e ela podia provar, ela podia ser diferente! -, mas pelo presente ela teve que fazer uma coisa, nada vem de graça, nem bondade. A mocinha ensinou uma música, e treinou com ela, disse que ela podia cantar para sempre, que música é essa coisa assim, se aprende e então é sua, e quanto mais sua ela é, mais se canta quando mais sozinha se está, você entendeu? sua cabecinha fez que sim, e ela sorriu, porque o mundo tinha segredos também, vai ver ela mesma era um!, e agora tinha tudo que se via e mais uma porção imensurável de coisas que não se via mas estavam acontecendo agora, ao mesmo tempo e o tempo todo e ela pode ouvir o mundo ao mesmo tempo, na sua cabecinha inventada, que de tão pequena mal cabia uma voz, quem dera reter o peso do mundo! Então ela teve que dar as mãos para outras meninas e cantar dançando em roda, depois ela sozinha cantava para essa máquina, e tinha um vidro com uma menininha dentro, que cantava com ela junto, era uma máquina que não deixava ninguém sozinho, era isso que ela era, e aí ela se envergonhou dos olhos da menina-da-máquina, olhando ela, as duas juntas Ciranda cirandinha vamos todos cirandar.

A moça falou obrigada e levou tudo embora e as meninas também foram. Ela estava sozinha de novo; a grama verde era trespassada pelo sol, o céu armava tempestade ou chuva mansa, seu azul se perdendo e desbotando, todo mundo ria e tinha alguém, e para ela o que ainda tinha? Tinha o mundo inteiro para brincar, mas ela era tão pequeninha - com trinta e sete anos ela ia ter saudade, porque pequena ela cabia em mais lugares, se escondia mais fácil e, sozinha, podia cantar só para si que O anel que tu me deste era vidro e se quebrou, o amor que tu me tinhas era pouco e se acabou, por isso pequena Maria entre dentro dessa roda, diga um verso tão bonito, diga adeus e vá embora.

sexta-feira, maio 14, 2010

O rosto dela era um contorno que dançava, mal se via um olho, a boca traçada apenas, se ela falasse alguma coisa, pelo menos... não tinha dia, a noite era uma eternidade e era fria, ela pálida de uma brancura dum nada natural, súbita, uma folhinha de papel, ele podia desenhar nela todas as coisas do mundo que fossem bonitas e feias, mas teria que viver com os erros de seus rascunhos, também. Tinha luz nela e o resto era escuro, caminhava ao seu redor sentado na cadeira, podia ver ela daqui e dali de todos os lados, muitas coisas para ver, as pintas que pintavam seu rosto e eram até bonitinhas, os cílios que encurtavam, as veias nos olhos de tanto ela ver as coisas, os pelinhos da pele no rosto, desses que se vêem só contra o sol, nesses dias de calor que é quente tanto que não resta fôlego prum mínimo qualquer de amor entre dois estranhos, ele a contaria fingindo que ela se importaria, sendo talvez tão educada que podia mesmo prestar atenção, "eu gosto muito de ouvir as pessoas falando, porque as pessoas falam tantas coisas estranhas quando se presta atenção de verdade", ela entediava murchando, sumindo dentro da areia, ele metia seus dedos para apalpar um áspero roçar de nada, cabeceando areia adentro sem ter medo de sufocar, ela se perdia numa imensidão, batia uma brisa que a levava embora, a imagem dela distanciando como um sonho recém-sonhado, cheio de gosto de uma realidade que vai desvanecendo, indo longe, se percebendo um crente delírio que, então, já não é mais; ela se perde entre todas outras coisas suas, ela é a lembrança da menina na sala escura, talvez linda, como ele poderia saber?, se escondendo num esquecimento entre muitas outras meninas de sonho que duraram tempo o bastante para um suspiro e nada mais.

sábado, abril 17, 2010

biblioteca

A primeira vez que ela entrou na minha biblioteca não pediu licença, mas nem precisava, eu muito certo daria (não que a biblioteca fosse minha, mas). Ela usava um vestido - coisa que eu gosto muito, especialmente um bonito, mais ainda um que é banal; vestidos de festa m'enfadam, até mesmo fora do corpo com o corpo sendo meu - rendado no cós, tinh'as pernas brancas, e os braços e o rosto, o cabelo era muito muito preto, absorvia um pouco o ao seu redor, até irradiava como se dali fosse escapar a noite. Eu levei horas para repará-la, ela que procurava e procurava alguma coisa, nos livros e nas páginas do livros, em todas as coisas. Tinha uma moça que cuidava da biblioteca, nunca vi gente mais sem graça, deve ser de tanto ler; foi falar com ela, porque a menina parecia muito perdida - era alguma coisa na forma como ela abria a boca e então mordia o lábio, resmungava e fazia caretas vazias - e a menina deu um sorriso meio doce, educado, vi a boca mexer falando e a mulher indo embora.

No próximo dia eu precisava estudar, entrei e sentei e lá estava ela; tinha tirado o vestido, trocado ele por roupas bem normais, mal lembro a cor, mas ela tem um jeito de azul-claro, não sei bem explicar. Tinha uma vontade além de mim que me fazia olhar para ela, por isso eu vi quando a moça da biblioteca veio, falou um pouco; a menina respondeu e respondeu sendo específica, a moça apontou para a porta e a menina deu um sorrisinho resiliente e um aceno de cabeça de Obrigado e continuou mexendo as coisas.

No dia seguinte tinha um amigo comigo, mas eu ainda podia vê-la sobre os ombros dele; então eu já podia ouvir o farfalhar das páginas na sua mão, o som seco dos seus sapatos, acompanhar a respiração - tinha horas onde ela brincava comigo, trancava uma inspirição ao momento que lia mais longamente uma passagem e eu antecipava o encontro dela com o que procurava, apenas para expirarmos juntos e desapontados - e, com um pouco mais de tempo, ler em seus lábios as passagens exalando c'ortelã no silêncio de seu poetizar... enfim, ainda não a conhecia. Comentei o que via com meu amigo: E daí?, ele respondeu.

"E daí nada, oras."

"Acho que a sua senhorita não iria gostar de vê-lo tão admirado de outra mocinha", ele riu. Mas como ele podia dizer alguma coisa? Não havia sequer relanceado a imagem dela!

"Eu só acho estranho, só isso, ela estando sempre aqui e tudo", disse num meio murmúrio, fui ler e naquele dia eu não salvei a vida de ninguém, nem fiz nada importante e essa foi a minha vida muitos e muitos dias entre o nasce-morre.

No quarto dia, eu cheguei antes da biblioteca abrir. Ela sempre me antecedia, queria saber quando chegava - dei de cara com ela recostada na porta, a cabeça caída contra a parede; houve um súbito momento de um pânico muito profundo, então sentei com a minha cara de sono no lado oposto da porta, e espiei o dormir dela. A boca entreabria, o corpo mal mexia; quis esquentá-la, dá-la um beijo e dizer que tudo ficaria bem; mas não tinha garantias do valor de nada disso. Já dentro, não li nada que não ela, seus passos, suas contracapas - por muito tempo ela estava contra luz, mas eu que estava transparente. Quando ela se posicionou bem, fui ao lado contrário da estante; pelas frestas sobre os livros, encontrei os olhos dela, círculos esverdeados que olhavam baixo, vi-a linda como se podia ser e fui procurar uma poesia tão bonita quanto. Esse foi meu dia.

Não dormi a noite, acordei o sonho inteiro passeando pela biblioteca, encontrando versos nunca escritos que eu podia comer para saber o gosto, co'ela espectrando ao meu redor feito o reflexo dum pesadelo na ameaça de irromper. O despertador tocou com a minha certeza de que Agora chega.

Ia o dia, entrei na biblioteca, toquei-na o ombro e Com licença, pelo amor de deus, eu não aguento mais te olhar aqui folheando esses livros sem fazer mais nada por horas e horas nem ler mais do que uma frases e isso tá me enlouquecendo tanto que eu já estou quase completamente apaixonado, então me diz: o que você tá fazendo.

Ela me olhou com graça transbordando, "Procurando".

"Procurando o quê?"

"Uma saída."

Meu sangue resolveu se pôr como se meu corpo inteiro fosse o céu; não soube porquê, mas meus olhos molharam - o cheiro dela me sussurrou que eu parecia chuva. Silenciados, pegamos livros, abrimos e folheamos. Não sei porquê, mas nenhuma resposta é tão simples como parece.

quinta-feira, março 25, 2010

Hoje sonhei com livros de política de um grego (Diáfones, vai saber se existe), enquanto minha prateleira de livros despencava por causa do peso. Acordei pensando no que deveria ler.

Já acordei pensando coisa pior.

segunda-feira, março 22, 2010

you know feelin' good was good enough for me

Pro inferno com o preto&branco, as ruas tinham cores de neon que se acendiam no chegar da noite e, sinceramente, não tem sol que se compare. Dá um friozinho - se tem sorte, ele entra barriga adentro - bom, mas tantotanto que s'ergue os ombros para levar a gola do casaco mais alto (e, quando faz isso, parece que pergunta: e daí? e quem não se importa tem um charme muito mais natural do que quem se importa), sai fumacinha da boca suspirando, sobe um arrepio e escapa um sorriso.

Os garçons põem as mesas na rua, armam elas, de madeira, na calçada. E a calçada é de pedras, pedras-do-calçamento, bem essas; diz-se que elas sabem de todas as obviedades do mundo, por isso rangem: ele pensou, quem sabe com os ouvidos certos se escuta... depois, será que cada pedra sabe uma certeza, ou todas sabem todas? se uma só, apenas, pode ser que ela fique tão distante que algum irlandês, atirado junto c'um resto de cerveja, cai de cara numa que diz, num português dos mais claros: Deixa de ser idiota, segue a vida! É claro que ela não ama mais!, e então vai embora como quem não ouviu nada.

Ele suspira. Fumaça.

As mãos nos bolsos, os ombros alto, queixo no peito: ele olha pros lados, procura a placa, vê os amigos. A felicidade tem um tom meio amarelo, às vezes é amarelo puro: dá de pôr num copo e chamar de tequila, até, se dispensar sal e limão; ele pensou entre o gosto amargo e a tremedeira, o pensamento veio com a queimação (que dá essa estúpida idéia de que os problemas estão sendo resolvidos), por que será que as pessoas usam tão pouco amarelo? Ele não entende a humanidade, evidentemente.

Um dos amigos ele nem conhece; aliás, nem o outro. Mas esse tem um jeito engraçado, gosta de abafadores de orelha e tem a voz hirta; parece que cada palavra que saí se apresenta com um formal Bom dia, tudo em? (aliás, elas parecem tão educadas que diriam Boa noite, porque era noite, e são o tipo de pessoa, embora palavras, para quem essa diferença poderia ser importante), quase que não ligando vir ao mundo, como se comunicassem com um descaso quase de não-se-importam oximoramente caloroso: "Vinha eu na rua L., quando na minha frente cai uma folha, e eu estou certo de que não é mais outono há pelo menos dois meses. Então olhei a árvore, ela era de bordo, e disse: Deus?"

"Você está bê-", o segundo era uma coisa franzina feito um fiapo numa lapela, ou pelo menos incomodava igual; tinha também os olhos absurdamente negros, e por isso ninguém olhava-o muito tempo a cara; no momento, mais especificamente, tinha os braços tão efusivos que quase independetes do corpo, quem passava e não bebia olhava feio, e pontuava a divisão silábica com os dedos: "-ba-", guardou para a última sílaba uma ponta do dedo encontra ponta do nariz que foi intimamente inapropriado "-do!".

"Estamos todos!", murmurou M. (o primeiro de todos; a segundo era G., o terceiro H.).

"Sim, mas explico" - então G aproveitou o tempo para rir de uma garrafa inapropriadamente grande de vinho, antes de retomar "A única casa que eu conheço com folhas de bordo no jardim, é a casa de Julia. E Julia eu amava muito porque quase não tinha o que não amar; no aniversário de 17 anos dela, escapei silencioso do castigo de minha casa, cruzei a rua e segui até a dela; atirei na janela uma pedra, porque sentia ter que ser romântico e a esperei descer. Ela abriu a porta com um frescor de primavera, como a minutos do desbrochar: o corpo lavado com um sabonete cheiroso, o cabelo molhado de banho. Ela me olhou com um rosto estranho, enquanto eu em silêncio olhava o relógio por sobre os ombros dela esperando a meia-noite; foram os ponteiros e eu a beijei. Nós fomos feito gatos num furtivo encaixe apaixonado até um canto recluso da casa, onde nos apaixonamos imensamente."

"Não encontro a parte de Deus nessa história", disse H.

"Dois ano após, comprei-a um pingente de folha de bordo. O ventro trouxe uma porta adentro naquele dia, e a encontrei ao me ir embora; ela me trazia com o rosto em uma cor nova, embrulhada na roupa como se tivesse diminuido - achei que ela diminuia mesmo, tentava alcançar o tamanho certo para morar confortavelmente dentro de mim - e no cabelo emaranhado, uma folha de bordo. Naquele momento, o céu clareava um nascimento tímido, e a cor do sol cobriu-a o rosto: nunca mais vi nada tão lindo. Por isso considerei o presente certo. Naquele dia, ela disse-me que não me queria mais."

Por um momento, eles beberam. Apenas.

"Deixei o pingente sobre a mesa por dois anos. Esperava alguém que perguntasse, ou que achasse beleza nele. Se acharam, ninguém nunca disse. Ao primeiro que comentasse, eu o daria, mas nunca aconteceu. E é aí que entra Deus.", ele mexeu os bolsos, trouxe as mãos para fora num lampejo frio, "Trago-o hoje comigo."

"Eu o quero", disseram ambos juntos.

G. riu; sua risada era estranhamente desonesta. "Depois da honestidade, dou-o apenas por um preço. A mais triste história de um primeiro coração partido, ganha um pedaço da história do meu".

terça-feira, março 09, 2010

my body is a cage

Na verdade, quem que nós temos? Não que odiasse o mundo, nem nada do tipo, mas tem sempre esse momento onde se olha além às pessoas e se pergunta, quem ela são? É triste perceber que ninguém é insubstituível, e é coisa de um fatalista pensar que talvez tivesse sido melhor evitar várias delas para começo de conversa; é menor problema, e menos problema é uma coisa boa. Nem tudo é tão significativo quanto parece, nem tudo importa: a maturidade demora a vir - a maior parte do tempo nós somos como pequenas crianças, que acham que toda vez que tem sangue tem a chance de morrer; e, enfim, talvez nós nos acostumemos com o sangue derramado, mas a dor é sempre uma coisa complicada de controlar. Tem gente que toma muito remédio, mas eu pessoalmente não gosto. Sabe o que é triste nisso? Isso muito possivelmente que dizer que eu fui mais rapidamente substituído, pela simples necessidades que os outros têm de substituir. E enquanto a vida deles seguia, a vida medíocre e fluída deles, eu estava em algum lugar, esperando a dor passar a seu tempo, aproveitando ela com esse pouquinho de prazer que toda dor dá, me importando com gente que, em horas como essa, eu nem sei se deveria me importar. É engraçado, eventualmente você olha as pessoas e elas são totalmente planas, você já espera delas muitas coisas; acho que por isso não dá de amar mais elas, por isso elas se gastam e perdem a importância. Eu não acho que eu seja importante. Sei que tem muita gente vivendo a vida que me esqueceu; sei que quem me amou pode, um dia, olhar uma coisa que a faz lembrar de mim, da mesma forma que coisas pequenas me fazem lembrar dos outros - como um chão de vidro, uma gota de água na testa, uma porta entreaberta -, mas é tão pouco, por tão pouco tempo... nós damos tão pouco aos outros, por isso que nós merecemos morrer sozinhos.

sábado, fevereiro 06, 2010

mimético

Ye gaveth time, thought time is wasted.

A--'paguei.

sexta-feira, fevereiro 05, 2010

romance

Uma donzela que, doce,
senta, então, na janela
para ela, no bico, trouxe,
um passarinho, uma flor amarela.

E na flor, em cada uma pétala,
uma letra, que juntas soletram:
"Lágrima não é o que cala
As dores que seu peito afetam".

Mas, para a doce donzela,
que vê, do outono, o orvalho
pendurar gota em fim do galho,

como, do amor, sempre a queda;
dá'deus a, da flor, o semblante
e come, mais doce, seu chocolate.

segunda-feira, janeiro 25, 2010

quarta-avenida

Ela atingiu-o num relance por através da vitrine, no momento único em que olhava o lado - e virar do rosto lançasse os cabelos ao distante revelar da face - seus olhos vendo, na exata e dramática hora, o tropeço dum infante gordinho, em futuramente envergonhantes meias até as canelas e suspensórios, que vinha em ruidoso estabaco ao chão; fez-se nela um sorriso impactante e caloroso, acendendo as feições com tal luz que beleza tanta o mundo 'inda não o revelara. Perdendo as costas dela no maremoto de gente andante pela rua, escapando um suspiro discreto que anunciava seu apaixonamento - ele sentia em si nascer um certo charme de amante, talvez -, tomou nas mãos uma caneta e um guardanapo e resolveu, certo que estava, que a presentearia com um poema. Este deveria, claro, ter ao menos um nisco de ácido - ela não seria sequer tão apaixonante antes risse de flor, gato, ou gracejo de estranho -, era, afinal, o pouco de vil emcantinho de sorriso que a deu toda graça, feito duma caligrafia fina de suavidade, mas de por propósito um A descruzado ou I despingado, para o aleatório do erro compor inebriante ar de descaso, de poeta compremetido antes de tudo à arte e ao mundo, mais ao amor que à ela, que mulher alguma nesse mundo tem como resistir.

Percebeu, mal tempo havia de romper um verso primeiro na branquitude do guardanapo, que nas costas da multidão não conseguia distinguir a forma dela, suave e bela, quiçá negra, e o abortado poema, por mais sentido fosse, não acharia a destinatária nem que dela houvesse o cheiro (por certo de madressilvas) a ser seguido. Viu, assim, as costas vazias dum cardápio e, logo, nele marcou para sempre o seu amor: veja que, se seus dotes permitissem retratá-la com alguma fidelidade num rascunho simples mas memorável - os garçóns e assíduos frequentadores s'acostumariam aquela imagem e, após ler o relato apaixonado (que segue), tomariam parte na incessante busca pela desaparecida moça de seus sonhos, mesmo que sem querer, e ao dia que ela fosse avistada por quaisquer deles, iria ao café, buscar o telefone anotado num cardápio feito carta de amor, ou encontrar, fosse o destino existente, doce e, ao mínimo, complacente, ele próprio de carne-e-osso, sentado com seu café e seus olhos aquém do mundo, uma vez que só brilhariam novamente ao mirar dela a face, e enfim conhecer-se para um romance cujo fim seria, pelo menos, a tentativa.

Isso posto, começou: "De ti, a mim não coube mais que uma furtiva vista, da qual não posso esquecer, tamanha a clareza que acometeu o meu afeto. Sigo, por um momento, triste - posso possuir tal beleza apenas nos meus sonhos; mas a dormir, temo os próprios, já que não tenho garantias de que me visitarás durante o sono. Se há, no mundo, um amor tão simples, é este o meu: de um súbito olhar, ao fim desta linha, diria, tão certo estou de minha loucura, que te amo." e pôs nome e um desenho, que ficou justo, quase digno da inspiração. Largou o cardápio desentendido, pagou o café, e foi para casa.

quinta-feira, janeiro 14, 2010

old stuff

"Me cansei de tudo. Acordar, dormir, entediar - dessa toda vida inteira. Só não me mato porque a vida, pelo menos, é reversível."

Janela adentro vinha o dia: luz puída de oito da manhã de domingo nublado, sonolento e cinza cáustico; as árvores da rua desfolhadas. Ele 'inda falava, porque nem sequer tinha ido dormir: o sábado ia entrar no domingo sem chance de recusa, num dia-a-dia anestesiado; ela nem perguntava mais os porquês dele - um coagulado filete de sangue d'uma veia ao cotovelo, bonito até era, mas vai dizer isso pro nojo.

Ela ia passar o café.

- Não, me escuta. Eu sei que isso não dá mais -- ela olhou, cara de sono. Os olhos inchados e o rosto amassado, a boca entreaberta, tinha até um pouco, umas casquinhas esbranquiçadas no canto do boca, porque ela tinha babado a noite inteira, ela dormia tão melhor sem ele na cama:

- Eu durmo tão melhor sem você na cama.

Ele olhou, meu deus, ele olhou tão sóbrio que ela se arrependeu, ela não esperava esses olhos, aliás, tinha dias em que ela achava que nem conhecia os olhos dele assim; foi então que ele disse: O que você quer dizer com isso?

Ela estava muito arrependida, muito mesmo, mas não tinha como voltar agora. Ela focou no café; o chiado da chaleira escapava numa fumaça que diluia aos olhos e pesava o ar; era da cor igual ao céu de naquela-hora. O coador -- Me diz! O que você quer dizer com isso?! ele vinha mais perto cheio de certeza e pés fortes determinados, mas ele parou antes de chegar perto, tinha medo de tocar nela, um medo incerto recente da resposta, ele coçou a nuca, ele sempre fazia isso, esperando O que... ele começou mas parou reticente -- e o pó de café preteando sobre o bule, ela jogou a água se infiltrando e saindo negra; um cheiro bom que os dois sentiam, subiu mais fumaça e o calor no rosto também era gostoso.

- A cama vazia é melhor para dormir.

- Por quê? O meu corpo te incomoda tanto assim? Porque eu posso ir dormir no sofá, ou sair da casa d'uma vez se tu quiser!

- Não, eu sinto a falta quando eu acordo, mas você se mexe muito de noite e--

- Você levanta para fazer xixi e para tomar água!

- ... mas eu adoro o calor do seu corpo do meu lado e o seu cheiro, mas sabe de uma coisa que eu percebi ultimamente?

- O quê?

- O seu cheiro não é mais o mesmo.

Ele parou num silêncio profundo e, na sua cabeça: uma vez que toda amor é química e cada humano tem sua própria composição de bases nitrogenadas juntinhas e essas bases DNAlizam em tudo que se produz lá dentro de seus corpos, são elas que florescem no calor e liberam esse suor carregado de cheiro do que é por dentro; e quando sente um cheiro bom cheirinho bom de pessoa amada ao âmago, é porque a química é a mesma e eles encaixam lindamente, com suas bases complementares apaixonadas; e é lá no saco que as coisas se agitam, nelas o útero contrái, seus corpos conspiram para o amor e é poesia de bocas se procurando e corpos perdidos um no outro e o embaralhamento de quem sou e quem é mudando lentamente e transformando, até serem tal como uma codependência de vida ou morte que é esse sofrido amor romeu&juliêstico. Disse, enfim: "O que você quer dizer com isso?"

- Não sei.

- Não sabe se ama, se me quer?

- Eu sei que te amo, mas não sei mais o que eu quero - não tem nada mais lindo do que uma manhã cinza de um dia vazio; ela via pela janela e era todo o mundo uma tela, se ela fosse uma artista, e era, porque era humana, essa gente que se fode pintando os dias com as cores do jornal, então sentia a angústia e o peito agitado no confronto entre o que se decide mostrar e o que lhe é chupada de qualquer jeito; esse é todo o peso de uma reticência - aliás, ninguém sabe o que quer.

- Eu sei. Eu queria amar errado a mulher certa, sangrar as dores duma vilania mal sucedida, chorar no escuro sozinho e com fome, me perder na madrugada duma cidade estranha, beber um chá de vidas passadas, encarnar um demônio antigo, ressucitar ao terceiro dia, poder ler a mente dos outros, desconhecer arrependimentos e ser outra pessoa.

terça-feira, janeiro 12, 2010

Ele não sabia dançar, mas sabia beber; não era o melhor dos bêbados, mas ficava sociável. Ela tinha cabelo vermelho feito um pôr-do-sol desbotando em alaranjado e amarelo que ele achava um pouco feio e um pouco de charme, pintinhas de sol no ombros, amigos estranhos que não gostavam dele, essas coisas. Ele gostava de fechar as portas; fechava quando ia no banheiro e quando ia dormir, também quando lia e quando desenhava, ou seja, sempre que ele podia ficar vulnerável (ele nunca falava que amava ela numa via pública também; ela as vezes gritava na calçada em meio de madrugada adentro, mas era mais por estar gritando de noite do que por amar ele tanto que precisava gritar antes que explodisse!, ele pensava).

Eles se conheceram quando o verão era só um começo, um dia mais quente ou outro - ele não lembrava bem onde. Eles davam as mãos e conversavam sobre a vida, um dia foram à praia - já era, então, verão, tudo quente e com areia - e ele estava lá na água, as ondas ao redor dela e ela refletia na água em fragmentos, não mais que estilhaços vermelhos sobre o sal - ele mergulhou infatilmente para passar por baixo das pernas dela, percebendo, quase num afogamento, que agora era diferente e essa era uma má idéia. O dia fechou tímido, era uma nuvem aqui e outra ali até que o céu fosse cinzento de inteiro, sopresse um vento frio como de morte e a praia fosse desertiando - eles s'aconchegaram numa cama de areia e canga, s'esconderam entre as plantas, s'amaram quietos-como-podiam e envergonhados ao alcance dos olhos do mundo e nem nunca souberam se alguém viu.

Passaram não-sei-quantos-meses de mãos dadas, comemoraram no fim da primavera; foi o verão irradiar os primeiros calores em fios desbotados e ela longeou-se feito um bichinho acuado, cheiacheia de reticências e frases incompletas, olhares distantes, principalmente, que era o que ele mais odiava. Ela disse "Sabe, acho que a gente deveria dar um tempo" - ele disse "O quê?" entre todo ponto final - "Eu até quero ficar com você e tudo o mais" - ele pensou nunca ter visto jura de amor mais feia - "Mas as coisas estão tão sérias e nós somos tão jovens" - ele pensou também que ela era tão exagerada - "Talvez a gente veja o mundo e tenha certeza que é isso que a gente quer e a gente volta, porque... sabe--" - ah, claro que ele sabia, era tão óbvio o que seguia, ele também amava, mas quem é que não amava alguém no mundo naquele mesmo momento? Enfim. E ela foi. Aí entra: a temporada das chuvas.

[...]