segunda-feira, abril 28, 2008

areia

Ela caminhava alguns passos a sua frente. O dia era jovem e frio, invernando nublado na manhã quando as estrelas põem-se no céu e há luz apenas no horizonte contornado por postes que ainda não se apagaram e não há bem sol. A areia molhada de pós-chuva era pesada, mais negra que nunca, como o mar que espumava cinzento longe dos pés.

Cabisbaixo, ele via seus calcanhares marcando a areia. Subindo, pernas nuas, um biquini vermelho embaixo da camisa larga meio azulada, o cabelo ao vento. Ela -- trim -- não virava para vê-lo, ele apenas podia -- trim -- sentir o peso no peito de alguma culpa. Ela con -- trim -- tornava a marca da última onda com os chinelos na mão e ele pensava em -- trim -- estender a mão e tocá-la, ver seu rosto talvez. Mas o peso no peito era -- trim -- mais do que no peito, e ele não conseguia -- trim -- se arriscar a -- trim -- esticar e -- trim -- angustiar o to -- trim -- que que era tão -- trim -- distante; Ela se virou e despencou na retina de uma só vez.

E ele nem a assimilou, porque era a mesma de sempre, mas com olhos tão úmidos como o horizonte de Junho e ele sentiu apertar o estômago vendo-a escapar como o vento antes mesmo de criar coragem de erguer os braços e -- trim --

Se Deus lhe dá chuva -- trim --, ela falou, se molhe.

Você não acredita em De -- trim -- us, ele respondeu tentando estragar tudo.

Nem -- trim -- Ele.

Ele abriu os olhos, alcançou o tele -- trim -- fone na cômoda e arrancou fios e jogou-o na parede, em um baque de silêncio. Era ainda madrugada e ele se vestiu com um agasalho velho e quente para a praia. Foi no ônibus vazio em silêncio, desceu na estação vazia em silêncio, sem cumprimentar o motorista ou o cobrador e pisou a areia quieto, com olhos de súplica. E, no vai e vem do mar, na areia molhada não havia passo algum.

quinta-feira, abril 24, 2008

febril

cof cof :roll:

sábado, abril 19, 2008

abstração número um

Ele era um vagabundo. A senhoria indagava-se com as vizinhas por que ele nunca lavava as unhas? ou por que as roupas estavam sempre tão descuidadas? e por vezes até esquecia porque deixava ele ficar ali mesmo?. Era melhor tê-lo que um bêbado e, apesar de nunca receber muito pelas acomodações, ela não conseguiria mais por um quarto atolado no lado de uma dispensa de vassouras e mofo; a cerveja que ele a servia sempre que ela aparecia era sempre boa, mas ela nunca sabia porquê.

Ele nunca falava mal dela, porém, porque mesmo quando ela comentava nas escadas - e ele ouvia, porque mesmo sem luzes para vazar pelas frestas do corredor, seus olhos ainda estavam abertos e ele ainda se importava - de que o achava tão estranho e quieto, como quando ele passava como uma sombra e a cumprimentava com a cabeça e isso disparava um frio na entranhas dela que pareciam uma marca do diabo e ela achava que ele era gay, quando ela trazia café para ele, ela sempre deixava a colherzinha, para ele poder ficar mexendo o quanto quisesse. Não que ela fizesse isso de propósito, ela apenas era uma daquelas mulheres que deixavam a colherzinha.

Além disso, ele mal saia do quarto. Ele mal fazia qualquer coisa. Normalmente ele apenas caminhava um pouco de vez em quando e aparecia com um pouco de dinheiro e uma garrafa meio estranha - que era o que ele jogava na cerveja e ela achava uma delícia, mesmo sem saber o que era - e voltava pro quarto e ficava lá, de novo. O terceiro filho dela não gostava muito dele, dizia que ele tinha cheiro de escarro. O mais novo gostava, mas o mais novo era estranho, também. Um dia ele tinha entrado no quarto do vagabundo e os dois tinham conversado um pouco e o pequeno saiu rindo, mas dois dias depois ela encontrou ele dentro do banheiro, repousando a cabeça em uma das esquinas de azulejos e cantando baixinho uma música que ela não entendeu, mas lhe soou comunista. Ela quase subiu para dar-lhe uma bronca e o jogar para fora dali, mas não subiu porque lembrou que o homem que morava lá antes costumava mijar no chão e ela odiava limpar aquilo. Esse ali só tinha as unhas sujas e o cabelo meio mal cortado o tempo todo.

Um dia, porém, as portas abriram com ele caminhando para fora pesado, numa marcha de angústia. Ele não andava mais curvado, como uma larva que se escondia, ele era ereto e circundado por brisa da batida de asas de borboletas. E sua insurreição foi cruel, porque agora ele moldava a realidade como bem entendesse, com seu eu lírico cansado de esperar por seu deus ex machina. Ele era seu próprio zeitgest, a arma de Chekov ignorada no canto que disparava no último ato e elevava-se aos céus depois de mastigar e cuspir a cidade de volta como Leviatã. Ele não era o fim nem o começo, mas todo o pathos da humanidade passava por suas mãos, quando ele os soprou com pulmões de lobo e os desfez como areia no tempo.

valor do inconsciente

2 litros de sake = R$130

sexta-feira, abril 18, 2008

zomg preciso andar estou a beira de um infarto isso não é uma poesia etc

quarta-feira, abril 16, 2008

enquanto sono

Entrecantam para entrecontos
entre passarinhos preguiçosos
e passarinhos azuis e verdes
- não papagaios, nem sabiás -
Nem baixo, nem alto, quase lá
no meio, certeiro, mas sem mosca.

Quase perdem, quase atropelam
Quase, por atenção, esgoelam
Mas o trem azul corta a estação
E os sapatos caem no chão
E não se abre mão de um belo par de sapatos.

E no meio do caminho da volta
na poeira que voa quando o pé revolta
São dez metros mais longe,
Que foram dez metros mais perto
Que são metros para a puta-que-o-pariu.

segunda-feira, abril 14, 2008

não há poesia

Ela espera na janela com uma garrafa,
de Coca-Cola, de vidro, quando à tarde
o sol decola no céu, entre nuvens
dourando a pele dela, no calor que o dia arde.

À noite, ela é hipnótica, incinética
quando pára, vestido branco, de dançar
e a boca jura, como suor sua. Inestática
quando volta, eu ainda em transe, a caminhar.

E há noite, lenta, quando a lua assenta
e ela é prateada de neon.
E há tarde, quando de carmesim o mundo mude
e os lençóis não se-amassem-não.

Mas todas as manhãs, de todos os ontens
e, quiçá, os amanhãs, dela o cheiro exala
e o gosto azede, vil, quando me aquieto
e, desapaixonada, me deixa em shh amá-la.

segunda-feira, abril 07, 2008

Velho

O velho louco ficava sentado em uma cadeira de armar listrada no jardim, todas as manhãs, para pegar sol e fotossintetizar um pouco. A camisa velha, mas bem lavada, passada e estampada de flores entreabrindo no pescoço e descendo até o meio do peito, para respirar melhor, revelando cabelos grisalhos que, contrários ao alinhamento dos da cabeça, eram uma confusão decadente. Ele não era louco de verdade, ele apenas falava sozinho; o que antes era uma louvável retórica, agora era verbovirulência temida pelos vizinhos.

"A senhora que passa com o cachorro", ele começou naquela manhã, "usa perfume demais. Ele entra pelas minhas narinas, sobrepondo o perfume das rosas, e, estagnando-se perto do cérebro, faz-me considerar uma lobotomia. Ela sempre olha-me estranho, pouco desejosa, mas o cachorro ela sempre trata bem. Um dos dois caga na frente de casas alheias, e não sou eu; ainda resta-me sanidade em certas partes do corpo. O cachorro já virou a esquina, deixou-a para trás. Eu entendo a distância, eu também tentaria escapar desse cheiro. ... Um rapaz aproxima-se" -- Como vai? "e pergunta-me como eu vou. Eu não vou, eu sempre fico e nada me custa a companhia, então pode se sentar, eu respondo. Um dia eu fui, quando ainda era jovem e saudável e não fazia as pessoas indagarem, ao chocarem-se comigo pelos corredores, de quem eram aqueles olhos; porque essas olheiras que agora os emolduram não existiam, e não os faziam tão distantes, como se fossem uma luz no fim do túnel. Pelo contrário, ainda existia uma saúde de locomotiva, que cuspia um vapor que fazia as jovens perderem o fôlego, e ela era tão clara quanto o azul dos olhos da menina que mora dentro da casa próxima ao terceiro poste a direita, contando a partir daqui. Os olhos dela são bastante azuis, lembram-me do... a vizinha fofoqueira vai sair para fazer compras. Toda vez que ela passa é necessário silêncio, para não arriscar que a língua me traia e desperte a dela que, por demais afiada, pode custar-me a cabeça. Ela anda rápido, deve precisar comprar trigo ou açúcar para terminar a comida. Ela só é assim obstinada quando o leite ainda ferve sobre o fogão. E agora ela vai ao longe, além de onde as orelhas de morcego dela podem escutar. Aliás, alguém deveria dizer a ela que é essa bisbilhotisse que lhe construiu o carma que cedeu a seu filho aquelas orelhas de abano. Como eu dizia, os olhos azuis da menina daquela casa empalideceriam perante um outro par de olhos que eu conheci. Ainda mais azuis, ainda mais brilhantes, você conseguia pentear os cabelos olhando para eles, e passar mousse olhando para eles, e fazer a barba olhando para eles, e cortar a jugular com a navalha e morrer sangrando sem arrependimentos por ainda olhar para eles. Eles me ouviam reclamar e cantar e a eles eu jurei amor eterno, que ainda guardo mesmo sabendo que a muito eles são apenas cinzas. Foram comidos pela guerra. Não por bombas, nem ondas atômicas, mas por uma mulher traída, que levou eles de mim sem nenhuma despedida e fez com que a notícia da morte só chegassem quando eles já estavam ressecados e opacos e não havia como vê-los uma última vez... o rapaz ao lado não pára de bater os dedos. Ele espera que eu durma. Ele nunca gostou das minhas histórias; esse velho babão, ele pensa, deve ter sido babão a vida inteira e não adianta ficar escrevendo com a boca a céu aberto que não me engana. Mas eu vivi coisas. E coisas demais. Todos os sonhos e corações partidos, tesouros de piratas e monstros da montanha, são todos meus. O outro rapaz sempre me entende e vê a verdade. Esse só espera para levar-me para dentro, para ver-me branco sobre a cama. Mas dia após dia ele vê-me verde, transcendendo essa existência, em rugas de celulose. Finjo que durmo para que me leve embora e para que se liberte, sabendo que amanhã a menina sairá de casa mais cedo e me cumprimentará com um aceno e aqueles olhos que reavivam as borboletas do jardim. E é a calma da rua de hoje que fará suportável a tempestade de lágrimas da noite nostálgica de amanhã."