segunda-feira, janeiro 25, 2010

quarta-avenida

Ela atingiu-o num relance por através da vitrine, no momento único em que olhava o lado - e virar do rosto lançasse os cabelos ao distante revelar da face - seus olhos vendo, na exata e dramática hora, o tropeço dum infante gordinho, em futuramente envergonhantes meias até as canelas e suspensórios, que vinha em ruidoso estabaco ao chão; fez-se nela um sorriso impactante e caloroso, acendendo as feições com tal luz que beleza tanta o mundo 'inda não o revelara. Perdendo as costas dela no maremoto de gente andante pela rua, escapando um suspiro discreto que anunciava seu apaixonamento - ele sentia em si nascer um certo charme de amante, talvez -, tomou nas mãos uma caneta e um guardanapo e resolveu, certo que estava, que a presentearia com um poema. Este deveria, claro, ter ao menos um nisco de ácido - ela não seria sequer tão apaixonante antes risse de flor, gato, ou gracejo de estranho -, era, afinal, o pouco de vil emcantinho de sorriso que a deu toda graça, feito duma caligrafia fina de suavidade, mas de por propósito um A descruzado ou I despingado, para o aleatório do erro compor inebriante ar de descaso, de poeta compremetido antes de tudo à arte e ao mundo, mais ao amor que à ela, que mulher alguma nesse mundo tem como resistir.

Percebeu, mal tempo havia de romper um verso primeiro na branquitude do guardanapo, que nas costas da multidão não conseguia distinguir a forma dela, suave e bela, quiçá negra, e o abortado poema, por mais sentido fosse, não acharia a destinatária nem que dela houvesse o cheiro (por certo de madressilvas) a ser seguido. Viu, assim, as costas vazias dum cardápio e, logo, nele marcou para sempre o seu amor: veja que, se seus dotes permitissem retratá-la com alguma fidelidade num rascunho simples mas memorável - os garçóns e assíduos frequentadores s'acostumariam aquela imagem e, após ler o relato apaixonado (que segue), tomariam parte na incessante busca pela desaparecida moça de seus sonhos, mesmo que sem querer, e ao dia que ela fosse avistada por quaisquer deles, iria ao café, buscar o telefone anotado num cardápio feito carta de amor, ou encontrar, fosse o destino existente, doce e, ao mínimo, complacente, ele próprio de carne-e-osso, sentado com seu café e seus olhos aquém do mundo, uma vez que só brilhariam novamente ao mirar dela a face, e enfim conhecer-se para um romance cujo fim seria, pelo menos, a tentativa.

Isso posto, começou: "De ti, a mim não coube mais que uma furtiva vista, da qual não posso esquecer, tamanha a clareza que acometeu o meu afeto. Sigo, por um momento, triste - posso possuir tal beleza apenas nos meus sonhos; mas a dormir, temo os próprios, já que não tenho garantias de que me visitarás durante o sono. Se há, no mundo, um amor tão simples, é este o meu: de um súbito olhar, ao fim desta linha, diria, tão certo estou de minha loucura, que te amo." e pôs nome e um desenho, que ficou justo, quase digno da inspiração. Largou o cardápio desentendido, pagou o café, e foi para casa.

quinta-feira, janeiro 14, 2010

old stuff

"Me cansei de tudo. Acordar, dormir, entediar - dessa toda vida inteira. Só não me mato porque a vida, pelo menos, é reversível."

Janela adentro vinha o dia: luz puída de oito da manhã de domingo nublado, sonolento e cinza cáustico; as árvores da rua desfolhadas. Ele 'inda falava, porque nem sequer tinha ido dormir: o sábado ia entrar no domingo sem chance de recusa, num dia-a-dia anestesiado; ela nem perguntava mais os porquês dele - um coagulado filete de sangue d'uma veia ao cotovelo, bonito até era, mas vai dizer isso pro nojo.

Ela ia passar o café.

- Não, me escuta. Eu sei que isso não dá mais -- ela olhou, cara de sono. Os olhos inchados e o rosto amassado, a boca entreaberta, tinha até um pouco, umas casquinhas esbranquiçadas no canto do boca, porque ela tinha babado a noite inteira, ela dormia tão melhor sem ele na cama:

- Eu durmo tão melhor sem você na cama.

Ele olhou, meu deus, ele olhou tão sóbrio que ela se arrependeu, ela não esperava esses olhos, aliás, tinha dias em que ela achava que nem conhecia os olhos dele assim; foi então que ele disse: O que você quer dizer com isso?

Ela estava muito arrependida, muito mesmo, mas não tinha como voltar agora. Ela focou no café; o chiado da chaleira escapava numa fumaça que diluia aos olhos e pesava o ar; era da cor igual ao céu de naquela-hora. O coador -- Me diz! O que você quer dizer com isso?! ele vinha mais perto cheio de certeza e pés fortes determinados, mas ele parou antes de chegar perto, tinha medo de tocar nela, um medo incerto recente da resposta, ele coçou a nuca, ele sempre fazia isso, esperando O que... ele começou mas parou reticente -- e o pó de café preteando sobre o bule, ela jogou a água se infiltrando e saindo negra; um cheiro bom que os dois sentiam, subiu mais fumaça e o calor no rosto também era gostoso.

- A cama vazia é melhor para dormir.

- Por quê? O meu corpo te incomoda tanto assim? Porque eu posso ir dormir no sofá, ou sair da casa d'uma vez se tu quiser!

- Não, eu sinto a falta quando eu acordo, mas você se mexe muito de noite e--

- Você levanta para fazer xixi e para tomar água!

- ... mas eu adoro o calor do seu corpo do meu lado e o seu cheiro, mas sabe de uma coisa que eu percebi ultimamente?

- O quê?

- O seu cheiro não é mais o mesmo.

Ele parou num silêncio profundo e, na sua cabeça: uma vez que toda amor é química e cada humano tem sua própria composição de bases nitrogenadas juntinhas e essas bases DNAlizam em tudo que se produz lá dentro de seus corpos, são elas que florescem no calor e liberam esse suor carregado de cheiro do que é por dentro; e quando sente um cheiro bom cheirinho bom de pessoa amada ao âmago, é porque a química é a mesma e eles encaixam lindamente, com suas bases complementares apaixonadas; e é lá no saco que as coisas se agitam, nelas o útero contrái, seus corpos conspiram para o amor e é poesia de bocas se procurando e corpos perdidos um no outro e o embaralhamento de quem sou e quem é mudando lentamente e transformando, até serem tal como uma codependência de vida ou morte que é esse sofrido amor romeu&juliêstico. Disse, enfim: "O que você quer dizer com isso?"

- Não sei.

- Não sabe se ama, se me quer?

- Eu sei que te amo, mas não sei mais o que eu quero - não tem nada mais lindo do que uma manhã cinza de um dia vazio; ela via pela janela e era todo o mundo uma tela, se ela fosse uma artista, e era, porque era humana, essa gente que se fode pintando os dias com as cores do jornal, então sentia a angústia e o peito agitado no confronto entre o que se decide mostrar e o que lhe é chupada de qualquer jeito; esse é todo o peso de uma reticência - aliás, ninguém sabe o que quer.

- Eu sei. Eu queria amar errado a mulher certa, sangrar as dores duma vilania mal sucedida, chorar no escuro sozinho e com fome, me perder na madrugada duma cidade estranha, beber um chá de vidas passadas, encarnar um demônio antigo, ressucitar ao terceiro dia, poder ler a mente dos outros, desconhecer arrependimentos e ser outra pessoa.

terça-feira, janeiro 12, 2010

Ele não sabia dançar, mas sabia beber; não era o melhor dos bêbados, mas ficava sociável. Ela tinha cabelo vermelho feito um pôr-do-sol desbotando em alaranjado e amarelo que ele achava um pouco feio e um pouco de charme, pintinhas de sol no ombros, amigos estranhos que não gostavam dele, essas coisas. Ele gostava de fechar as portas; fechava quando ia no banheiro e quando ia dormir, também quando lia e quando desenhava, ou seja, sempre que ele podia ficar vulnerável (ele nunca falava que amava ela numa via pública também; ela as vezes gritava na calçada em meio de madrugada adentro, mas era mais por estar gritando de noite do que por amar ele tanto que precisava gritar antes que explodisse!, ele pensava).

Eles se conheceram quando o verão era só um começo, um dia mais quente ou outro - ele não lembrava bem onde. Eles davam as mãos e conversavam sobre a vida, um dia foram à praia - já era, então, verão, tudo quente e com areia - e ele estava lá na água, as ondas ao redor dela e ela refletia na água em fragmentos, não mais que estilhaços vermelhos sobre o sal - ele mergulhou infatilmente para passar por baixo das pernas dela, percebendo, quase num afogamento, que agora era diferente e essa era uma má idéia. O dia fechou tímido, era uma nuvem aqui e outra ali até que o céu fosse cinzento de inteiro, sopresse um vento frio como de morte e a praia fosse desertiando - eles s'aconchegaram numa cama de areia e canga, s'esconderam entre as plantas, s'amaram quietos-como-podiam e envergonhados ao alcance dos olhos do mundo e nem nunca souberam se alguém viu.

Passaram não-sei-quantos-meses de mãos dadas, comemoraram no fim da primavera; foi o verão irradiar os primeiros calores em fios desbotados e ela longeou-se feito um bichinho acuado, cheiacheia de reticências e frases incompletas, olhares distantes, principalmente, que era o que ele mais odiava. Ela disse "Sabe, acho que a gente deveria dar um tempo" - ele disse "O quê?" entre todo ponto final - "Eu até quero ficar com você e tudo o mais" - ele pensou nunca ter visto jura de amor mais feia - "Mas as coisas estão tão sérias e nós somos tão jovens" - ele pensou também que ela era tão exagerada - "Talvez a gente veja o mundo e tenha certeza que é isso que a gente quer e a gente volta, porque... sabe--" - ah, claro que ele sabia, era tão óbvio o que seguia, ele também amava, mas quem é que não amava alguém no mundo naquele mesmo momento? Enfim. E ela foi. Aí entra: a temporada das chuvas.

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