domingo, setembro 05, 2010

god only knows

Quem é ela?, com sua fala pequena, sua cor desbotando, suas perguntas vazias, suas respostas sem sangue, dizendo-me coisa sobre coisa que eu esquecerei no rodopio de suas palavras, sua história que se borda intermitente, cortando as pontas e dando laços sobre superfícies bonitas, de brilho barato: sua cama de setim, prostituída pela tecelagem, manchada de restos de corpos pulsantes, de suores silenciosos que secam lentos no inverno, colando-se à pele que se levanta, que se lava e se perfuma. Quem é ela, com seu nisco de silhueta, seu corpo suave bom de se tocar, seus olhos de brilho passageiro e sonhos translúcidos de grandeza, sua mágoa profunda do passado e do futuro, mas sua paixão se consumindo no presente, homem a homem, boca a boca, puxando a alma com a língua e a mastigando impiedosamente com os dentes, cheia de fome e sede, anêmica, voraz. Quem é ela com o cigarro na boca e o cigarro na mão, tragando de olhos fechados, com as costas arrepiando, com os pés descalços, com a calcinha de ursinhos, com os cabelos bagunçados, fingindo que posa para um quadro italiano com um lírio nas mãos. Quem é ela, deitada nua no chão da casa, estendida ao sol da janela na manhã de terça-feira, dizendo mijo merda e caralho, chamando o gato de buceta e sentindo ele roçar os bigodes em sua coxa, com a cabeça lembrando do infinito cordel de impropérios que aprendeu na escola, embaixo das carteiras. Quem é ela, com a pele clara coberta de frio, apavorada da morte sozinha, com os olhos retendo choro, chamando pela mãe fantasma com a vozinha de criança, escondendo a cabeça com o lençol, querendo conhecer alguém no parque, quinta-feira, e se apaixonar como se tivesse quinze anos. Quem é ela, olhando o telefone e não lembrando mais meu número, não lembrando mais meu nome, com a cabeça no mundo da lua, me vendo na rua e se perguntando quem eu sou.

your protector

E ele trouxe flores brancas que ela guardou em um vaso sobre a mesa e, semana antes dele voltar uma outra vez, o vento já tinha levado cada uma delas e espalhado suas mortes pelo chão.

Ele chegou, então, entrando pelo escuro da casa, e a luz do lado de fora tinha acendido cada um dos pedaços brancos, o sol dando uma última vida frágil às plantas. Procurou no vaso a água limpa e não disse mais nada. Varreu todas e deitou-as no jardim.

Ela chegou, entrou na casa e cobriu a boca com a mão; seus olhos de lágrimas dúbias - seus retalhos de jardim consumidos e desprezados, mas só pôde entressuspirar: "Amor?". Ele surgiu primeiro pelos olhos acendidos pela sombra, depois num sorriso e então a sobrancelha erguida; estavam os dois presos a um beijo bem vindo e mórbido, até ela sussurrar ao pé da orelha "Cuidei delas com tanto carinho...".

Ele a empurrou longe com as mãos, colocando-a nos olhos; via-a triste e queria cuidar dela, mas ela virava o mar da vista em vergonha. Quis contar a ela da desimportância das coisas, que as flores são flores e só, que a morte é inevitável; quis contar que teve medo de beijá-la uma noite e sentir sua carne sumindo de seus lábios, vê-la se desenhar em uma outra mulher estranha, de linhas tortas e reflexos opacos; que imaginou valsar ela por um palco de saudade, e soprar nela o ar de vida que enchia seus pulmões quando ele a tocava. Engasgou.

Disse só: "És uma tola" e a abraçou.