quarta-feira, outubro 27, 2010

sombra pelas águas

Apareceu súbita: vinha correndo e tinha nos olhos um brilho fanático, uma coisa de fogo queimando por dentro, que, saída para fora, tomava o horizonte num farfalhar selvagem, dando cor de vermelho e tantas outras, carbonificando firmamento acima até a noite. Lia-o as mentiras como quem lesse um poema, achava rima e graça no jeito tolo de enganar no que dizia, não sabida dos jeitos cruéis de invadir um coração pela garganta - e então seguindo as veias, passeando o corpo todo, até o sangue mesmo resolver que ela voltava e acabava bem no músculo, com esse desinteresse sem maldade que só fazia a situação mais difícil - e, por isso e muito mais, era uma coisa perigosa.

Ele não sabia como tinha a aceitado tão sem luta, e a cada momento desimpedido, a mente limpa, ela surgia numa lembrança e ele era todo questionamento; embolsava as mãos, coçava a nuca, suspirava rangendo os dentes, andava círculos e ao redor de coisas paradas, chutava coisas caídas, latas e poeiras e folhas de plantas secas. Não encontrava resposta para o descontentamento que era tê-la tão adentrada no seu ser, ao ponto que ele misturava sua solidão à imagem dela, sempre repetindo as coisas mais lindas em que ele a vira, as roupas favoritas e os trejeitos mais escapados, ou o sorriso mais quente e as palavras tropeçadas e bêbadas de um dia bom. Fosse mais adepto do drama, de impor uma gravidade de colosso a esmagar suas certezas, estaria aos prantos num pé de cama, induvidado de que ela era a paixão da sua vida - não apenas de carne, de mulher, de amor e todas essas trocas, mas de uma coisa a ser compreendida e estudada, ao ponto de conhecê-la aos contrários e distorcida, através d’água da chuva e da noite, ou piscando colorida num movimento incapturável entre as luzes de um bar - e sua dedicação seria a vida ao mistério e farsa que ela era.

Acontece que ela, muito despercebida pela doçura que era seu encanto, dava ritmo a sua vida sem contar com ele caído (de amores), e seguia distanciado como que sem forças para lutar contra o vento - e nem podia, e isso era todo o peso da sua alma, essa incerteza lavada que apedrejava seus caminhos, lameando os pés trôpegos e sujando o corpo, impressionando que um dia ela fosse toda rota e as sebes do vento finalmente a deixassem em frangalhos e sua última lembrança fosse onde o nome estivesse anotado e escrito, porque o corpo já era há muito e fora emborcado pelo infinito -. Então que ele, já há muito apaixonado (talvez que por só um minuto, mas a eternidade parecia, mesmo que só pelo todo esforço do corpo em senti-la assim tão próxima), passou a persegui-la com olhos descontrolados, tentando especializar na arte de fechá-los ou desviá-los antes que ela os percebesse, indo e voltando dela para uma janela, ou dela para o céu, ou dela para o livro que ela lia, porque não tinha nele ainda a vontade de possuí-la nos braços nem saber as graças da voz; não arriscaria esse momento sublime de farrapo humano, de perder o ego e implorar uma presença alheia, essa coisa doce e arisca que é domar o selvagem de um novo amor, pelas palavras dela que carregavam o peso dogmático de dizer que sim ou não. Arrepiava, gemia, sonhava acordado em cada passo, não deixando um único momento silencioso de calma - ela seguia, pouco sabida, sendo gentil quando podia e, isso o atormentava, ela não fazia porque convia, mas porque era, e só o confundia ainda mais. Essa bondade negra, de alegria sem sentido, ela cheia de uma sem-timidez de ser uma tola; ela era lambuzada de um paraíso traído, perdido na impressão de pureza dos seus olhos, na franqueza das palavras e dos jeitos carinhosos de fazer qualquer um especial -- ele temeu tanto estar tomado pelos encantos que um dia, os dois novamente embriagados, corpos caídos próximos, ele resolveu não a olhar, escapando da hipnose das formas e os movimentos ritualísticos de seu corpo: aconteceu que a voz dela inda mantinha o mesmo apelo, cada palavra dita de um jeito translúcido com que ele pudesse atravessar com os olhos as intenções, e como a vontade dela - o sopro do vento, enfim - aproximava da sua, como atraídas ou magnéticas de desejo, disparava seu coração. Num instante mesmo, ela aponta uma menina e pergunta "Ela não pára de olhar, porque não vai lá e beija ela?"

"Assim como o cheiro da comida sendo feita, a quem está saciado causa enjôos, o mesmo acontece a um coração tomado, apresentado a possibilidade de um outro amor", respondeu.

Ela gemeu rindo-se, "Você fala de um jeito tão estranho ás vezes".

"Isso é ruim?"

Ele via no riso dela, nas curvas do rosto, no jeito do resto, a negação formando-se nos lábios "Não--", o sossego dela, como não tinha ele pensado antes?, tinha gosto de cerveja e morava na superfície da sua boca.

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